CASAMENTO EM SURUBIM (memórias)

No início dos anos 90, minha esposa, Luciane, ainda estudava o último ano de medicina em Recife, para onde eu ía a cada 15 dias passar o fim de semana com ela. Lá ela fez várias amizades, dentre as quais uma estudante de medicina de nome Nadja.

Nadja, jovem de família tradicional de Surubim, já se encontrava em adiantado estado de noivado, quando conseguiu, finalmente, convencer o seu noivo a dar fim à solteirice e trocar as tão almejadas alianças no altar, já que Nadja não queria ir para o Caritó. Seu noivo, não sei qual o verdadeiro nome, era carinhosamente chamado de "Peca", oriundo de Petrolina. 

Nadja fez questão que Luciane fosse à cerimônia de seu casamento e Luciane, por sua vez, fez questão que eu fosse com ela. No final-de-semana do casamento eu estava em Recife e, assim, no dia do casamento, partimos de Recife rumo a Surubim, no Chevette azul  de Luciane, naquela ensolarada manhã de domingo. 

Como saímos muito cedo de Recife e a viagem poderia amarrotar nossos trajes, eu me aprontei apenas pela metade, vestindo a calça do terno, com uma camiseta, e calcei os sapatos, deixando a camisa social, a gravata e o paletó, os quais acomodei em um cabine junto ao vidro do banco traseiro, para vestir quando chegássemos a Surubim. 

Já Luciane, que usaria um vestido de cor marrom de um tecido acetinado e bem mole como se fosse uma seda, escolhera um modelito do tipo "envelope" (as mulheres entendem o que estou falando; os homens que deem uma busca no Google por "vestidos do tipo envelope", se não entenderem), mas viajava de saia e camiseta, planejando trocar de roupa, de alguma forma, quando chegássemos a Surubim. O vestido iria igualmente pendurado em um cabide.

Eu sempre digo que uma desgraça só ocorre por uma sucessão de erros, nunca por um único e isolado erro. Não foi diferente nesse dia.

Quando já estávamos a uns 10 km de Surubim, com o sol da manhã já quente, abri por completo os vidros do Chevette, que não era dotado de ar condicionado, para refrescar o ambiente interno e ouvíamos James Taylor no toca-fitas. Eu dirigia o carro respeitando os 80km/h e com cuidado na estrada. A abertura total dos vidros do carro permitia uma circulação mais veloz  do vento em seu interior, fazendo vibrar nossas roupas nos cabides a ponto de soarem ruidosamente.

Vez por outra, eu dava uma checada nos retrovisores do Chevette e, numa dessas vezes,  notei que, saindo de uma curva, a uns 400m atrás, apontou, na reta em que estávamos, uma Kombi (não sei porque Kombi's sempre estão presentes nessas horas!) daquelas usadas para transporte alternativo (leia-se clandestino).

Aquilo logo me colocou em estado de atenção ao volante, porque a Kombi vinha em velocidade superior à minha, tanto é que se aproximava a cada segundo.

Nesse ínterim, e alheia à aproximação de algum perigo, Luciane, repentinamente, decidiu mudar um pouco os planos iniciais e resolveu trocar de roupa ali mesmo, dentro do carro em plena viagem! Pior, não ouvindo minhas advertências, tirou a blusa que estava usando e virou-se para pegar o cabide com o vestido "envelope", que ela pretendia ali mesmo pôr. Ainda cheguei a esboçar uma reação: "Cuidado, você vai terminar...!!!"

Não deu outra: quando ela se virou para a frente e tirou o vestido do cabide, uma lufada de vento forte fez vibrar ainda mais aquela peça de roupa e, na passagem de uma mão para a outra, o sedoso vestido de suas mãos foi sugado pelo vento para fora do carro, fazendo-o voar como se estivesse sendo atingido por um tornado formado pela velocidade do carro! "Valei-me, meu Deus!", gritou, ela, agora só de soutien e saia no interior do carro.

Um sonoro "Tá vendo o que você fez?saiu de minha boca (desaconselho usarem esta pergunta-carão clássica em todas as situações cabíveis. Esta é a pior frase que alguém pode escutar quando o erro cometido já se consumou), visualizando pelo retrovisor o vestido dela, agora rumo ao asfalto, como se fosse uma folha seca. Eu ainda fitava só o vestido quando me lembrei de algo pior que pudesse acontecer, soltando um grito de "Puta merda Lu, aquela Kombi vai passar por cima do seu vestido!", ao ver que aquela Kombi vinha com a gota serena na direção do vestido que agora jazia na pista.

Eu já podia antever a desgraça: Lu, assistindo ao casamento, com o vestido marcado de uma lado a outro com uma ou mais impressões de pneus, como se fosse uma faixa de campeã ou uma camisa do Vasco da Gama!


Imagem de autoria desconhecida, reproduzida da Internet via url


A Kombi que, por sorte, naquele dia era dirigida por alguém com alguma bondade no coração, ao se aproximar do vestido no asfalto, descreveu uma curva nos últimos segundos e evitou passar por cima do vestido. Minha sensação de alívio teve logo que ser substituída pela operação resgate do vestido, pelo receio de que outro carro que viesse não fosse tão complacente. Por sorte isso não aconteceu. Recuperamos o vestido quase que intacto e terminamos nossa viagem a Surubim. Mas nossa odisseia em Surubim ainda não tinha terminado.

Ao entrarmos em Surubim, paramos uma transeunte para perguntar onde se localizava a igreja matriz da cidade. Chegamos na praça da matriz quando faltava pouco mais de 15 minutos para a cerimônia ocorrer. Mas, como não poderia ser diferente, ambos o noivo e a noiva estavam atrasados. Apenas algumas pessoas já se acomodavam nas duas primeiras fileiras da matriz e outras pingadas nas demais fileiras. Na verdade não conhecíamos os familiares de Nadja. Resolvemos, então, sentar na 3ª fileira, lá na frente, para não deixar aquela sensação de desprestígio à noiva ou à sua família.

Esperamos por alguns minutos, quando um burburinho e uma inquietação tomaram conta dos convidados. O som começou a tocar e todos (apesar de não serem muitos) se voltaram para a entrada principal da igreja. Era o noivo que, finalmente, chegara!


Foto de autoria desconhecida, reproduzida da Internet via url. 



O sol já batia forte lá fora, fazendo uma claridade externa obnubilar o rosto do noivo, do ponto de vista dos que estavam no interior da igreja, como Lu e eu. Assim, só conseguíamos ver, na verdade, a silhueta do noivo. A rigor, eu só vira Peca, o noivo, uma única vez numa comemoração de fim de ano em Recife e não me lembrava de sua fisionomia. "Aquele é o Peca mesmo, Lu?", indaguei. Ela focou a vista, apertando os olhos e mordendo os lábios e, ainda sem muita segurança disse: "Acho que é... não tá dando para ver muito bem daqui... é, acho que é ele mesmo. Ele tem as pernas cambotas mesmo. É ele - é o Peca!", certificou-se Luciane, abrindo um sorriso de alívio e graça.

Uma sensação de alívio também tomou conta de mim, pois seria muito constrangedor estarmos no casamento errado e, ainda por cima, termos que desfalcar a já rarefeita plateia daquele enlace matrimonial.

À medida em que Peca ía entrando, braços dados com sua dama de companhia, provavelmente sua mãe, sua silhueta dava lugar à sua verdadeira imagem, agora mais nítida pela iluminação, ainda meio lusco-fusco, do interior da igreja. E, a cada passo em que Peca avançava pelo corredor central da igreja e se aproximava das  fileiras mais à frente, notei o rosto de Lu se desfigurando e se transformando, indo de uma expressão  contemplativa para interrogativa, depois para desapontada e, finalmente congelando em uma expressão apavorada: "Vixe Maria, esse não é o Peca não, Volney!"

Inadvertidamente, esquecendo-me de que me encontrava em um lugar religioso e sagrado, soltei um resmungo meio de canto de boca, no pé do ouvido de Lu: "Puta merda, Lu,  estamos no casamento errado!!?". 


Certa vez uma amigo de nome Tito, sem perceber, entrou na festa de aniversário errada do que supunha ser de um amiguinho de escola de sua filha, depositando o presente naquelas caixas de coleta de presentes que dispõem na entrada da festa. E,  depois de se instalar em uma mesa com esposa e filhos, ao perceber o equívoco, teve que bater em retirada, não sem antes catar de volta o presente que comprara para o verdadeiro aniversariante, perdido entre dezenas de outros. 

No casamento em que estávamos, sair daquela igreja foi um tremendo constrangimento, mas foi inevitável, pois, além de tudo, iríamos chegar atrasados ao verdadeiro casamento de Nadja e Peca! 


O noivo, em sua lenta e protocolar marcha entre a porta da igreja e o altar, ainda não chegara à altura de nossa fileira quando decidimos nos retirar, o que pensávamos ser discretamente, e iniciar uma constrangedora saída. É óbvio que isso atraiu os olhares de quase todos na igreja, inclusive do noivo, visto que nos entreolhamos. Mas tudo que eu queria fazer era sair dali!

Encurtando a conversa, por fim, descobrimos que o casamento estava se realizando na capela do colégio de freiras da cidade, para onde tomamos rumo, tendo a sorte de ainda presenciar a parte geralmente mais esperada pelos convidados para aquela cerimônia religiosa: ouvir o padre dizer, "Ide em paz e o senhor vos acompanhe!".

Aquele, definitivamente, não era um dia de sorte. Para encerrar a sucessão de trapalhadas,  na festa do casamento, alguém ainda derramou, acidentalmente, um copo de refrigerante no vestido de minha Lu. MAs chegamos sãos e salvos de volta a Recife. Ufa!


VOLNEY AMARAL

Expressões regionais:
"Ir para o Caritó" = ficar solteirona, vitalina.
"Com a gota serena" = em alta velocidade; enraivecido; magoado





Comentários

  1. LUIZ CARLOS - BRASÍLIA1 de maio de 2012 às 03:38

    Você errou o casamento do Peca e minha mulher, Deila Nina, errou o enterro do Cadeca.
    Minha sogra, Maju, famosa por ser um pouco distraída, telefonou avisando que um dos filhos de uma vizinha do seu prédio tinha falecido.
    "Qual deles?", perguntou Deila Nina.
    "O Cadeca. Você não sabia que ele andava muito doente ultimamente?".
    Depois de mais de uma hora no velório do seu amigo de infância, que ela não via há muito tempo, eis que Deila Nina dá de cara com o morto passeando pelo salão. Cadeca, magrinho que só, mas vivinho da Silva, estava sendo cumprimentado pelos amigos na capela.
    "Meu Deus, então que é aquela pessoa tão parecida com Cadeca deitado lá no caixão?", assustou-se Deila Nina.
    Era o irmão do Cadeca, que aliás sempre foi muito saudável.

    PS: Bela crônica, Volney.

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  2. Na verdade, eu já estava usando a camiseta coma qual iria ao casamento; faltava tirar o short e vestir a saia-envelope.
    Não fiquei de saia e soutien. Foi pior: fiquei de camiseta e calcinha! (kkkkk)
    O que voou foi a minha saia (tipo envelope, como ele disse, que eu só precisava amarrar na frente e pronto, não fosse o vento da janela).
    Inesquecível data!

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