ROLETA RUSSA (memórias)

Nos tempos de dificuldade, estudávamos (e, precocemente, já ensinávamos também) inglês no CCAA do Farol, eu e meu amigão há quase 40 anos, Cláudio Marinho, o hoje super conhecido e prestigiado professor Marinho, do Colégio Madalena Sofia e do CNA Centenário.

O dia mais feliz do mês era o de receber nossa micharia de professor. Santa micharia que, diga-se de passagem, era nossa tábua de salvação e servia para ajudarmos nas despesas de casa e nas nossas despesas pessoais, de estudante universitário. Aguardávamos, com muita ansiedade, receber nosso sagrado salário de professor de inglês no fim do mês, oportunidade em que, invariavelmente, descíamos juntos até a Praça do Pirulito, onde eu morava e Cláudio seguia para o Trapiche da Barra, a pé, de ônibus e, às vezes de bicicleta. 

Estando com algum trocado no bolso, coisa rara naqueles tempos, sempre parávamos na Praça Deodoro para um programa imperdível de fim de mês: comer um tal de um cachorro quente que vendiam numa Kombi  (eu já falei que, não sei o porquê de as Kombis estarem sempre presentes nestas históriasadaptada para ser um carrinho-lanchonete que estacionava à noite na praça Deodoro e era cercada por uma pequena multidão de ávidos comensais. 

Nossa,  aquele cachorro quente era deliciosíssimo! Mas não dava para ser comido com elegância, dado seu tamanho e disposição da generosa quantidade de maionese que era colocada. Comer cachorros-quentes com muita maionese, dizem, engorda, mas, vez por outra, aquele cachorro quente tinha um efeito contrário: nos fazia perder peso além do normal no dia seguinte, por conta de um belo desarranjo intestinal.

Na Praça Deodoro o movimento de comensais era frenético por volta das 10h da noite, horário em que a praça fervilhava de estudantes dos cursos noturnos voltando para casa. E nós estávamos no meio dessa massa quase toda noite que tínhamos um trocado  no bolso, ou seja, uma ou duas vezes por mês! Tempos bons aqueles em que a Praça Deodoro não estava em poder dos cheira-colas, dos cheira-crack, dos sem-tetos, em geral, que, hoje, pela ausência e incúria do poder público e pelo infortúnio de suas vidas, degradam a praça com um toque forte de decadência e odor de urina!


Vez por outra, Marinho usava sua bicicleta, vindo desde o Trapiche até a Av. Moreira e Silva, no Farol, para dar suas aulas. Numa das vezes que retornamos do CCAA de bicicleta, eu me ofereci para vir de bicicleta com Cláudio, pedalando, e Cláudio viria na garupa. Jamais tínhamos descido os dois na mesma bicicleta. Quando Cláudio ía de bicicleta eu descia de ônibus. 


Naquela noite, Cláudio não achou seguro descermos os dois  a Ladeira dos Martírios de bicicleta, apesar de ele nunca ter passado por qualquer perigo fazendo isso em suas descidas solo. 


Lad. dos Martírios, no cruzamento com a Rua do Sol

Ao final da ladeira dos Martírios fica a Rua do Sol, que, mesmo à noite,  tinha um considerável movimento de carros no sentido perpendicular. Tanto é que esse cruzamento foi um dos primeiros em Maceió a ganhar um semáforo.


"Acho que é (seguro).", garanti a Cláudio. "Então vamos lá", disse-lhe confiante. Naquela noite, comigo ao guidão, embarcamos em sua Monark e iniciamos nossa viagem que viria a ser um aventura ciclística. 

Descemos, então,  o restante da Av. Moreira e Silva, onde ficava o CCAA,  e que termina na parte alta da Ladeira dos Martírios...

Já no início da ladeira, a bicicleta começou a pegar embalo. A brisa da noite era um bálsamo para aquela noite tépida. Não sei a que velocidade estávamos, mas Cláudio foi logo advertindo: "Vá freiando, Volney, vá freiando, Volney!"

E a Monark avançando ladeira abaixo. "Vá freiando, Volney!" E eu, como se não estivesse ouvindo os clamores de Cláudio, nada lhe respondia. E a bicicleta aumentando a velocidade e Cláudio já ficando com medo. "Freia, Volney, freia!". A velocidade já estava muito além do limite da nossa irresponsabilidade.

"Volney, rapaz, freia esta porra desta bicicleta, senão a gente vai se esborrachar lá embaixo!", bradou Cláudio, já desesperado. Foi quando eu saí de meu silêncio sepucral com essa pérola: "Tô freiando desde lá em cima, Cláudio!". Se aquela bicicleta tivesse freios a disco, estes já estariam incandescentes! O peso de dois passageiros e a inclinação da ladeira impuseram uma velocidade que o atrito das tamancas dos freios não era capaz de vencer. E a velocidade não diminuía.

Arregalamos os olhos de pavor, imaginando a desgraça que estava à nossa frente: o cruzamento da ladeira que descíamos desembestados e absolutamente à deriva, com a Rua do Sol! Uma colisão com qualquer obstáculo àquela velocidade não deixaria um saldo menor que um olho roxo, meia dúzia de cacos de dentes, a cueca imprestável para uso posterior e as rodas da bicicleta num formato mais adequado para subir escadas! 

Saltar, tampouco era uma alternativa boa, a menos que preferíssemos sofrer escoriações generalizadas, com risco de traumatismo craniano. E tome adrenalina, tome grito de pavor ladeira abaixo "Uáááááááááá...!". 

O último recurso que nos sobrou foi  tentarmos frear a bicicleta atritando nossos calçados no piso de asfalto e na roda dianteira. Eu, com meu kichute ainda com pouca kilometragem rodada que eu comprara no mês anterior, e Cláudio com seu Bamba 1000 Milhas, a roçar e a atritar os calçados no asfalto. Foi um paliativo que somente funcionou para diminuir um pouco a velocidade da descida, mas ela continuou! Nossas mandíbulas vibravam batendo na arcada dentária superior, olhos arregalados e as bochechas ondulando ao sabor dos buracos e da falta de amortecedores na bicicleta!. "trrrrrrrrrrrrrr Uáááááááááá....!

Não me lembro se com sinal verde ou vermelho, mas cruzamos a Rua do Sol incólumes, por muita, muita sorte, e quase alçamos voo na parte final da ladeira, já na praça, onde o grito que iniciei acima terminou. Foi uma verdadeira roleta russa involuntária que jamais repetiríamos. 

Até que nossos corações e nossa  respiração voltassem ao ritmo normal nós já estávamos chegando à Praça Deodoro, sem acreditar como tínhamos saído ilesos daquela enrascada! Ainda bem que estamos aqui para contar esta história! Ah, o meu Kichute e o Bamba do Cláudio, depois daquela ladeira? Já eram, mano!!! "Dois cachorros quentes e duas Cocas, moço!"

VOLNEY AMARAL

bigu = carona
garupa = bagageiro, assento traseiro da bicicleta; 
Kichute e Bamba = marca de calçado meio tênis, meio chuteira;

Comentários

  1. Nem adianta convidar que eu não saio mais com vocês dois.

    ResponderExcluir
  2. Não só os calçados se foram, mas as cuecas também, não?
    Que deus abençoe as aventuras de vocês, mas, sobretudo, esta amizade. Beijos.Lu

    ResponderExcluir

Postar um comentário