ORIGINAL E XEROX

O nome "Volney" não é muito comum. A primeira vez que eu me deparei com um homônimo foi interessante, marcando-me pelo resto da vida. Essa história é contada, em parte, neste artigo.

No início dos anos 70, após eu concluir o primário no Grupo Escolar Dom Pedro II, minha mãe procurou me matricular no ginasial em um colégio que fosse próximo à Praça do Pirulito, onde morávamos.

O imperativo seria eu estudar em uma escola pública, mas o CEPA, complexo educacional público de excelência nos anos 70 aqui em Maceió, ficava muito longe de onde eu morava, o que implicava em despesas de transporte público, além do que eu era ainda muito jovem e danado para ficar muito longe do alcance e vigilância de minha mãe.

Naquelas redondezas da Praça do Pirulito só havia dois colégios bons, mas não eram escolas públicas e gratuitas: o Colégio de São José, que só matriculava pessoas do sexo feminino e o Colégio Sagrada Família, este misto, que acabara de inaugurar suas novas instalações no bairro do Prado, a cerca de 500m da Praça do Pirulito. Só que o Sagrada Família era colégio particular e minha mãe não tinha condições de assumir o pagamento das mensalidades.

O Colégio Sagrada Família era um colégio da classe média de Maceió. Nele estudavam aqueles que não podiam ou não queriam estudar em colégios então tidos como top de linha, como o Colégio Marista ou o Colégio Santíssimo Sacramento. Portanto, a rigor, nem no Sagrada Família eu podia estudar. Mas minha mãe, depois de muito peregrinar por gabinetes de políticos, conseguiu uma bolsa federal para eu estudar no "Sagrada", com o então deputado federal Geraldo Bulhões.

Demorei muito a entender como e porque um deputado federal de Alagoas como Geraldo Bulhões tinha conseguido tantas reeleições (salvo engano 4 mandatos de deputado e um e governador), mas esse fato é um forte indício. Chamavam-no de deputado "copa do mundo", porque ele só dava o ar da graça em Alagoas a cada quatro anos, quando das campanhas eleitorais em que sempre se reelegeu. Esses "favores" do governo federal ditatorial da época, na verdade um dever do Estado, nos eram prestados pelas mãos dos deputados e senadores simpáticos à causa golpista, pois os ajudavam a manutenção do status quo e os perpetuavam no poder, reelegendo-os.

Bem, o que há de interessante neste artigo sobre aquela época é que o Colégio Sagrada Família era um celeiro de grandes figuras. Havia muita gente inteligente em seu corpo de alunos. Mas, o colégio também abrigava uma plêiade de maloqueiros (1) originários de sua própria base ou egressos de outros colégios por motivos de indisciplina ou expulsão.

Dentre eles havia um de nome Volney, um notório Volney, mais velho que eu: o Volney Rebelo. Minhas travessuras naquela época eram muito pueris e sem maiores consequências. Volney Rebelo, ao contrário, desde aqueles idos, já era uma figura carimbada(2). Volney Rebelo tinha fama de bad boy e já era visto no colégio com muita atenção e reserva por parte das autoridades de disciplina, desempenhada pelo censor Dênisson. Então, nessa relação, eu sabia quem Volney Rebelo era, por sua notoriedade, mas ele não sabia quem eu era, pela minha quase absoluta invisibilidade.

Certo dia estava eu no pátio do "Sagrada", quando eu vi Volney Rebelo conversando com algum aluno que apontava para mim. Achei aquilo estranho, mas após isso, Volney Rebelo caminhou em minha direção e me inquiriu: "É você que é o Volney?" "Sim, sou eu. Por que?", respondi. Sem me explicar nada e sem muita cerimônia, Volney Rebelo segurou-me pela orelha e disse: "Vamos comigo, seu cabra-de-peia!"(3) E arrastou-me pelo pátio do colégio, levando-me até a diretoria.

Dona Zezé Loureiro, a educadora que fundou e ainda administrava o Sagrada Família, era uma pessoa que metia medo não só por ser rigorosa e disciplinadora. Seu corpanzil de uns 200kg, devido à obesidade mórbida de que sofria, e sua voz rouca imprimiam à sua presença um respeito aterrorizante em nós, alunos. E ela sabia muito bem usar essas suas características pessoais para impor sua autoridade. Era implacável com indisciplina.

"É este aqui, o engraçadinho que vocês deviam procurar!" vociferou Volney Rebelo, transferindo minha custódia às autoridades disciplinares do Sagrada Família.

Foi então que eu fiquei sabendo o que se passara antes. Volney Rebelo havia sido chamado na Diretoria e recebido uma suspensão de 3 dias porque teria "assinado" seu nome em quase todos os cartazes informativos dos murais, postes, paredes, portas e em carteiras do colégio.

Aqueles recorrentes, digamos, afrescos rupestres, eram, na verdade, obras de minha autoria (o meu nome "Volney") que podiam ser vistos em vários lugares e móveis do colégio. Não era por maldade ou vandalismo meus que eu fazia aquilo. Era uma mania, quase inocente, que eu tinha. Talvez Freud explique melhor isso. E, por ter a fama que tinha, meu homônimo foi logo catado pelos cheleléus(4) disciplinares do colégio para pagar pelo erro que eu ele não tinha cometido.

"Como eu disse a vocês, não fui eu quem andou rabiscando o colégio todo com meu nome. Foi este aqui, minha cópia Xerox! O nome dele também é Volney e é quem vocês realmente procuram", denunciou Volney Rebelo.

Assumi minha culpa e a suspensão foi imediatamente transferida para a pessoa que vos escreve. As outras penalidades disso derivadas me aguardavam em casa.

Desde esse dia, apesar disso, nos tornamos bons amigos Volney Rebelo e eu. E quase sempre que nos encontramos ele grita: "Xerox!", apelido com o qual ele imortalizou, para marcar aquele fato e para nos distinguirmos um do outro; e, se estiver na presença de um terceiro, ele sempre lembra aos seus interlocutores sobre essa história vivida por nós naqueles tempos.


Anos mais tarde, eu tive que sair do "Sagrada", indo estudar no Colégio Cônego Machado, da rede pública estadual. Achava eu que teria sido por causa desses pequenos deslizes disciplinares, mas, de fato, foi porque a União era péssima pagadora das bolsas de estudo e o colégio não queia mais assumir o ônus de ficar com a fatura na mão sem ver a cor do dinheiro.

Geraldo Bulhões foi deputado enquanto quis sê-lo. Após 4 reeleições, em que seus cartazes de propaganda eleitoral estampavam a mesma foto da primeira campanha, ele foi eleito governador de Alagoas, onde se tornou notório nacionalmente por questões domésticas.

Meu xará, o Volney "Original", demorou um pouco, mas consertou-se, pelo menos pela metade. Hoje é advogado, político e líder de um grupo de motoqueiros itinerantes, cuja atividade concentrou na cidade de Marechal Deodoro, onde possui uma lendária casa de veraneio chamada por ele de "Malvinas". Já viu, não é?

Volney / Antonio Volney Cesar Rebelo
O Original

Dona Zezé veio a falecer alguns anos após esses fatos e hoje empresta seu nome à antiga Rua 2 de Julho, onde foi construído o colégio.

O Colégio Sagrada Família, naqueles idos, chegou a ser a segunda potência esportiva e estudantil de Alagoas, um celeiro de grandes alunos, grandes atletas e um colégio de respeito. Depois, à semelhança do Marista e do Sacramento, experimentou um período de decadência. Aos poucos, o "Sagrada" foi minguando, tendo entrado em um processo de inviabilidade financeira, até ser desativado. Uma pena!


Prédio possui 20 salas de aula com a capacidade para receber mais de 3 mil alunos
Pátio de entrada do Colégio Sagrada Família
foto: site Alagoas24Horas
O colégio, as pessoas, os arredores e os fatos enriquecem minhas memórias e me trazem saudade de um tempo em que éramos jovens, às vezes inconsequentes e indisciplinados, é verdade, mas de boa-fé e inofensivos - muito diferente das barbaridades que atualmente  assistimos alguns alunos cometerem contra os professores, diretores e o patrimônio público ou particular das escolas. E éramos muito felizes!

VOLNEY AMARAL



Post scriptum:

 1 - Antes de publicar este artigo, comuniquei-me com Volney Rebelo, para quem enviei o texto para sua aprovação. Após isso, liguei para ele e acompanhei sua leitura por telefone. Foram 5 minutos de gargalhadas de ambos os lados da linha. Após isso, ele me mandou o seguinte e-mail, ipsis litteris:


"Dileto Volney xerox,
Essa culpa EU me livrei, entretanto voce praticou um milhão e setecentas mil presepadas que não foi possivel provar. Seu mizeravel. Autorizo plenamente voce me livrar desta pequena culpa, e tambem as milhões de outras que voce deve.
Falando serio: Voce é um amigo Extraordinario, fantastico, Fenomenal. Alem, é claro, de ter se transformado no Brilhante causidico. Tenho muito orgulho de voce, meu Amigo. Um forte abraço

Volney Rebelo - o original"

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DEDICATÓRIA

Dedico este artigo a Sebastião Braga Mota, Ricardo Toledo Pacheco, além do próprio Volney Rebelo (o Original), cujas amizades, desde aqueles tempos, o tempo e a distância jamais foram capazes de vencer!
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Referências do texto:

(1) bad-boys, locas, pessoas muito travessas;
(2) pessoa notória, muito conhecida, muito popular no meio;
(3) danado, safado, sacana;
(4) bajuladores, puxa-sacos;


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