O NADA ANJO GABRIEL

Bullying não é coisa dos dias de hoje. Sempre existiu e sempre existirá, enquanto existirem esses três elementos associados em um só lugar: estudantes, falta ou deficiência de educação doméstica e alguém com predisposição para reagir a uma provocação, ainda que inconscientemente.

O termo bullying deriva da palavra bully, do idioma inglês, que se refere a alguém que é cruel, dominante e arrogante, especialmente com pessoas mais fracas psicológica ou fisicamente. Praticar o bullying é, em síntese, exercer esse poder, a crueldade dessa força, essa arrogante superioridade contra outras pessoas.

Aprendi esse termo, ou pelo menos o substantivo do qual deriva, ainda nos anos 70, quando estudava inglês no CCAA, no script de uma lição-filme de um desenho animado do Bugs Bunny (Pernalonga).

A cena do cartoon era hilariantemente digna de Pernalonga: um cão é mandado por seu dono, um marciano, para retomar um explosivo que o Pernalonga lhe tomara para evitar que, com isso, o marciano destruísse a terra. 

O cão, ao encontrar o Pernalonga pega o explosivo, mas Pernalonga agarra-o também e tenta arrancá-lo, à força, do cão:

- Você vai me entregar esse explosivo!, brada Pernalonga.
- Ah, não vou não!, retruca o cão.
- Ah, vai!, repete Pernalonga
- Ah, não vou!, grita o cão.
- Vai sim!, insiste Pernalonga.
- Vou não!, garante o cão marciano.

Nesse momento, o Pernalonga, ardilosamente, inverte as frases:
- Não vai mesmo!
E o idiota do cão, que estava dizendo o contrário, passa a dizer:
- Vou sim!
E o Pernalonga:
 - Ah, não vai me entregar, nem a pau!
- Vou sim! Ou você pega este explosivo, ou eu vou empurrá-lo em sua goela abaixo!, ameaça o cão, fazendo exatamente o que Pernalonga queria: retomar o explosivo.

Então o matreiro Pernalonga ainda sai com essa pérola:

- "Ok, you big bully, you've talked me into. I'll take it. But I'll tell my big brother and he'll fix you up!" ("Ok, seu grandalhão intimidador, você me convenceu. Eu vou ficar com isto. Mas vou contar ao meu irmão mais velho e ele vai te dar uma sova!" (tradução contextual e não literal)

Praticar o bullying é algo, hoje em dia, altamente reprovável, mas, durante muito tempo, foi algo que passou à margem das preocupações de psicólogos e educadores. Em outros tempos, o bullying corria solto. Havia alunos que, somente com seu corpanzil, eram uma ameaça para os demais. Se tivesse um pouco de inteligência, coisa que a maioria dos bullies tem em pequena escala, a dominação era ainda maior. Os "big bullies" geralmente se tornam chefes de gangs escolares, pois cooptam seguidores em troca de lhes dar proteção ou notoriedade.

Na época em que estudei no, hoje extinto, Colégio Sagrada Família, em meados da primeira metade dos anos 70, havia um aluno de nome Gabriel que era uma espécie de big bully com os menores, obviamente. Era um gordinho que pesava certamente perto de 100 quilos quando ainda tinha uns 13 anos e tinha estatura alta para sua idade. E ele se aproveitava disso.

Mas Gabriel perdia as estribeiras se alguém o chamasse de "BAIACU", apelido mais comumente dado a alunos com, digamos, excesso de tecido adiposo no corpo, para sermos politicamente corretos. 

O nome dessa espécie de peixe que, para se defender, começa a inchar, até ficar parecendo uma bola de arame farpado por ter, ainda por cima, espinhos altamente tóxicos, ganha um grau ainda mais indesejável para alguém dele ser apelidado porque a sílaba tônica da palavra é no "u" final. Não tem quem goste disso! Gabriel odiava esse apelido!


BAIACU

Nossa! Se alguém apelidasse Gabriel de baiacu certamente seria caçado e espancado por ele! Eu jamais me atrevi a chamá-lo de baiacu, pois era franzino e, por isso, medroso! Mas eu tinha um colega de classe de nome Washington, hoje um dentista, que, certa vez, achou uma maneira de tirar um sarro da cara de Gabriel.

Nossa excelente professora Nélia, que nos ensinava Estudos Sociais, às vezes nos passava um dever de casa muito avançado para aquela época e para a nossa idade. Consistia em pedir que, na segunda-feira, cada aluno trouxesse de casa um recorte do jornal do fim de semana, para que lêssemos e comentássemos a notícia escolhida. 

Era uma forma de nos inserir no hábito de ler jornais ou revistas e de nos estimular a ver as notícias com um olhar crítico. Era algo muito proveitoso. Só que as notícias tinham de ser dignas de reflexões, indagações. Geralmente deveriam ser notícias políticas, de economia, ou algo que nos despertasse discutir e conhecer seu contexto, abrangência e repercussão em nosso cotidiano.

Naquela segunda-feira, ela sorteou alguns alunos e deu a outros a oportunidade de, voluntariamente, ler a notícia trazida para a sala comentar. Poucos se atreviam a isso, por timidez ou por não terem trazido absolutamente nada para a aula do dia!

Foi nessa ocasião que Washington levantou o braço e disse:
- Eu tenho uma notícia professora que recortei e trouxe para ler hoje!.

Todos se voltaram para Washington. Hoje, eu creio que, além de mim e Sebatião Mota, a quem ele antecipara o conteúdo, metade da turma também já sabia disso antecipadamente.

- Ah, que bom, Washington. Você nunca traz nada. Pode ler seu recorte de notícia, Washington. Em voz alta!, autorizou dona Nélia.

Washington desfraldou o recorte do matutino que trouxera no bolso da calça de seu uniforme, tomou fôlego e leu a manchete jornalística no tom e volume sugeridos por dona Nélia, fazendo uma maliciosa ênfase na última sílaba da manchete:

- BAIANO MORRE COM MOQUECA DE BAIACU!

A professora não entendeu a explosão de gargalhadas que a turma deu. E Washington, com a cara mais cínica, fez aquele gesto tradicional de "Não estou entendendo nada!" ou "O que foi que eu fiz?"

O semblante do rosto arredondado e sardento de Gabriel "Baiacu" fechou-se, ganhando uma coloração avermelhada, evoluindo para roxa. Dava para sentir o chão da sala vibrando, pois Gabriel "Baiacu" estava com seus braços apoiados na sua carteira, a boca travada como se sofresse uma convulsão e suas pernas forçando as pernas da carteira para fora, como se quisesse desmontá-la. A agonia de Gabriel "Baiacu" ainda se prolongou com os comentários que alguns alunos fizeram, estimulados pela professora Nélia, alheia à pilhéria posta em prática por Washington. Mas ele nada pode fazer, tendo que conter sua cólera, pelo menos até a hora do recreio.

Terminada a aula, não houve lugar que escondesse Washington! Gabriel Baiacu o caçou por toda a extensão do colégio e, quando conseguiu botar as mãos em Washington, desferiu-lhe uma saraivada de croques (cascudos) que, apesar de bastante doloridos, não contiveram a crise de riso de Washington e dos demais que a tudo assistiam. Washington era uma sem-vergonha que nos fazia rir às escâncaras! Que saudade das peripécias daquele mulato gaiato e dos bons tempos de estudante!

VOLNEY AMARAL

Comentários