A CAIXA DE SAPATO

As feiras nas pequenas cidades do interior do nordeste são muito interessantes. 

Mais que um mero supermercado de produtos a céu aberto, as feiras são um festival semanal de rurícolas e moradores urbanos; um caldeirão de aromas, temperos, linguagens, cores, sons. As manifestações culturais se tornam visíveis na diversidade de bebidas, dos alimentos, dos tecidos e calçados, das indumentárias de vaqueiros e montarias, dos animais e, principalmente, de tipos humanos;

As feiras representam não só um grande mostruário da cultura sertaneja. É nessa oportunidade que os pequenos agricultores levam o que excede dos frutos de sua agropecuária de subsistência para vender, comprar e até, como nos tempos mais remotos da civilização, trocar suas mercadorias por outras de sua necessidade mais premente. Vende-se, compra-se e troca-se de um tudo!

Cada cidadezinha tem por costume realizar sua feira em um dia que não coincida com o dia de feira das cidades circunvizinhas. É que, para a feira ser boa, é necessário que feirantes das outras cidades tragam seus produtos para vender ali nas demais feiras. Assim, a feira em um lugar é no sábado, o da cidade vizinha é no domingo, e assim por diante.

Na minha cidade natal, Pão de Açúcar-AL, a feira era dia de segunda-feira. Por mais esquisito que seja, terminamos nos acostumando com isso. O sábado era um dia absolutamente normal e a própria segunda-feira, com todos os serviços públicos e privados funcionando, acaba sendo um dia agradável, cheio de novidades.

No caso de Pão de açúcar, era comum ver, além das caravanas de automóveis, cavalos e carros-de-boi que vinham das cidades de Olho d'Água das Flores e Santana de Ipanema, o frenesi e o ziguezague das canoas de tolda, das pequenas embarcações de pesca e as lanchas que subiam ou desciam o Rio São Francisco para transportar os ribeirinhos e suas mercadorias para encorporá-las à oferta e à procura por produtos comercializados na feira.

O dia de segunda-feira, então, transfigurava Pão de Açúcar e duplicava sua população urbana, formando um formigueiro humano barulhento e inquieto. Ao final da tarde, restavam somente os indícios formados pelos restos de farinha e outros grãos negligentemente derramados no chão, o lixo e as bancas que logo deveriam ser removidas para um depósito a fim de que a cidade volvesse a seu cotidiano até a semana seguinte. Entravam em cena, então, os garis, com suas vassouras de palha removendo, o quanto possível, a xepa e os restos de galhos, folhas e caixas de papelão que há pouco haviam servido de embalagem.

Toda feira de interior que se preze tem pelo menos um “homem da cobra” ou o “homem do peixe elétrico”, ambos geralmente roucos do esforço que despendiam para fazerem-se ouvidos. Além do inusitado dos animais que os sustentam, os homens da cobra e do peixe elétrico vendiam sempre um infalível óleo ou pomada que – prometiam eles – curariam todo tipo de doença, desde o reumatismo até as dores lombares, asma, picadas de insetos, ou de répteis peçonhentos, cicatrizava feridas. 

Em feira de cidadezinhas do interior sempre há serviços de som com alto-falantes através dos quais se ouvem músicas, recados, torpedos de azaração, e até cantores. Até os anos 70 era comum haver pelejas de desafios de repentistas e aboios de vaqueiros, recitadores de literatura de cordel, tudo ao vivo, em torno de quem se juntavam pequenas multidões para assistir e torcer.

Meu pai, comerciante que se prezava, tinha, além da “Galeria” nome que chamávamos seu principal negócio, um misto de bar, sorveteria, mercearia e loja de brinquedos, além dos estúdios da estação de rádio, durante certa época também montou uma banca na feira, na qual eventualmente tínhamos que trabalhar para ajudar em todos os seus negócios.

Murilo, meu irmão mais velho, hoje falecido, era muito presepeiro e adorava pregar peças nos outros. Mas era muito medroso também. Este artigo, além de pretender prestar alguma informação sobre a vida no interior, conta uma de suas presepadas, perpetradas com o auxílio de Toinho, meu outro irmão, em um dia de feira em Pão de Açúcar.

Certa vez, num desses dias de feira, com matutos vestidos em suas melhores roupas, circulando pelas calçadas e entre as barracas da feira, Murilo chamou Toinho e, entregando-lhe uma caixa de sapatos que preparara e embrulhara, pediu-lhe que a colocasse no banco do passeio da feira, como se alguém a tivesse perdido lá. Deu as instruções a Toinho cochichando-as em seu ouvido.


foto ilustrativa
Toinho arregalou os olhos e deu um sorriso maroto, como quem achou engraçado ou excitante o plano, e  topou a missão, antes de por em prática as instruções de Murilo. Então, Toinho atravessou a rua e “esqueceu” propositadamente a caixa de sapatos no local combinado, retornando para perto de Murilo para assistir ao desenrolar de sua trama, tal como se tivesse armado uma arapuca para pegar passarinhos.

Não tardou muito, a caixa de sapatos chamou a atenção e a cobiça de duas figuras metidas a sabidas. Como quem achara uma botija e se tornaria seu dono, mais de um matuto reivindicou a propriedade daquela linda  caixa de sapatos. “Essa caixa de sapatos é minha!”, dizia um. “Não senhor, é minha eu que deixei ela aqui e voltei para apanhá-la!”. Toinho e Murilo, vendo o resultado positivo de sua brincadeira, se divertiam assistindo ao bate-boca dos dois matutos. Toinho aproximou-se daquele início de disputa para captar o diálogo que, aos poucos, ia se tornando cada vez mais áspero.

Quando a querela estava quase em vias de se tornar uma luta corporal, tendo atraído transeuntes curiosos a incitá-los a brigar, com vaias e provocações desafiantes, eis que apareceu um soldado do destacamento policial de Pão de Açúcar que cumpria seu mister de policiar a feira, e interveio a fim de resolver o mérito daquela lide.

Naquela época, segunda metade dos anos 60, em pleno governo militar golpista, a polícia era uma autoridade a quem se devia muito respeito. Ou melhor, a quem se devia muito medo. E os policiais se aproveitavam dessa autoridade exacerbada e passavam por cima dos cidadãos como um trator. Era obedecer ou obedecer, senão as coisas teriam consequências indesejáveis.

Tendo sido infrutíferas as tentativas do praça em determinar quem era o verdadeiro dono daquela disputada caixa de sapatos, o soldado raso, sabedor da hierarquia militar e, lembrando-se de quem estava em seu comando naquele dia, nada mais nada menos que o temido sargento Cavalcante, milico com fama de brabo, valentão, autoritário e ignorante.

Esse sargento Cavalcante viria a ser o Cavalcante, um personagem marcante na famigerada guerra entre as família Calheiros e Omena, na qual ele foi assassinado próximo à praça Montepio, a 200 metros do quartel da Polícia Militar em Maceió no final dos anos 70.

Vamos para a delegacia. Vocês vão resolver isso lá com o Sargento Cavalcante!”, sentenciou o policial. E de lá partiram rumo à delegacia os dois matutos supostos donos da caixa de sapatos, o soldado que os deteve, uma dezena de curiosos, dentre eles Toinho, que interessara-se pelo desfecho do caso para depois contar a Murilo, que ficara com receio de que a coisa se voltasse para ele, autor intelectual daquela confusão.

A delegacia da cidade fica num dos extremos da bela avenida principal local, batizada com o nome de Bráulio Cavalcante, um dos filhos mais ilustres de Pão de Açúcar, orador de escol e poeta prestigiado, que fora assassinado em 1912 por motivos políticos em plena praça dos Martírios, em Maceió, onde fica a sede do governo estadual. 

À porta da delegacia, Toinho e outros curiosos se acotovelavam esperando o desfecho do caso. O soldado, segurando a disputada caixa de sapatos, encaminhou seus supostos adquirentes à sala do temido sargento Cavalcante, cuja porta dava para o corredor central do prédio. 

Passado alguns instantes de conversas inaudíveis pelo pequena plateia, eis que, de repente, os curiosos foram surpreendidos com a caixa de sapatos voando para fora da sala do sargento Cavalcante, cruzando o corredor e indo chocar-se violentamente na parede, caindo ao chão entreaberta e já sem a embalagem incólume. 

Os berros do sargento Cavalcante foram audíveis, contudo ininteligíveis, mas certamente não eram frases amistosas. Instantes depois, os dois supostos donos da caixa de sapatos eram recolhidos aos costumes, a uma das celas do fundo do corredor.

Instantes antes de aquela caixa voar pelos ares em velocidade próxima à da luz, o sargento Cavalcante, igualmente curioso, e planejando avidamente pegar um dos reivindicadores na mentira, pois aquilo não poderia pertencer a duas pessoas, desembrulhou a caixa de sapatos e abriu sua tampa. 

Porém, ao abrir, ele se deparou com um monumental tolete de bosta já escurecido e extremamente malcheiroso que Murilo colocara minutos antes de chamar Toinho para aquela empreitada que deveria ser simplesmente uma brincadeira cômica, mas que fugira de seu controle e virara um caso de polícia!

Apertando o maxilar com força e fazendo suas narinas abrir e fechar de cólera, o Sargento Cavalcante atingiu o auge de sua ira. O que ele fez com a caixa eu contei algumas frases acima. Vendo aquela demonstração de raiva, aquela plêiade de curiosos, temerosa, tratou logo de se dispersar. 

Os matutos, não se sabe, ao certo, que reprimenda ou pena sofreram. Devem ter ficado detidos até o dia seguinte. Sobrou até para o soldado raso que acabou por submeter seu temido superior hierárquico àquele vexame que deve ter feito até os matutos rir da cara do sargento!

VOLNEY AMARAL


(Baseado e adaptado a partir de fatos reais)

Comentários

  1. Ora, ora... mais uma história p´ros meus arquivos. Parabéns, Volney, pela dissertação tão detalhada, com os requintes da nossa língua-pátria, o que não poderia ser diferente. A Galeria Rex é parte da nossa história, assim como o Cine Globo, a rádio do mesmo nome e a Casa Ilma, que vedia brinquedos que nos davam água na boca. Saudades de Murilo, meu amigo-irmão que deve estar"lá", divertindo-se com o nosso saudosismo-saudável.

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