O COPO DE VITAMINA

Eu não sabia que isso se constitui em um fato tão comum. Meu amigo Cláudio já tinha me contado uma história semelhante, ocorrida com a tia Zailde, da época em que eles moraram em Aracaju

Mas nesta semana, ao visitar minha mãe, eu quis prolongar minha estada em seu apartamento e simplesmente prosear um pouco com ela. Como nos velhos tempos, fomos deitar e conversar um pouquinho em sua cama.

Foi uma tarde super aprazível e agradável. Havia tempo que eu não fazia isso com minha mãe - deitar, abraçadinho com ela, puxar conversa. E em nossos colóquios, gosto de especular sobre fatos do passado, sobre histórias de nossa família e de minha infância, para estimulá-la a exercer a memória e as lembranças do passado. Dizem que isso faz bem e previne o avanço de doenças que afetam a  memória.

Dei alguns motes e ela mordeu a isca. E passou a me contar algumas histórias. A garimpada que fiz deu certo e me rendeu esta que conto agora. É uma história acerca de meu irmão Toinho, que já mereceu algumas menções em outros artigos deste meu blog. 

Contou-me minha mãe que, quando pequeno, Toinho era muito chimão (1) e danado. E ela não gostava muito desse predicativo em nenhum de seus filhos.

Berenice de João de Santa, que as pessoas mais íntimas chamavam de Beré, era uma das amigas de minha mãe em Pão de Açúcar. Ela dera à luz um de seus filhos havia algumas semanas e minha mãe ainda não a tinha visitado por ocasião da maternidade. 

Então, minha mãe resolveu ir visitá-la naquela tarde e, como não tinha com quem deixar o danado e irrequieto Toinho, recém entrado na adolescência, resolveu levá-lo consigo na visita a Beré.




Mas, antes de sair de casa com Toinho e já prevendo que ele liberaria seu comportamento pidão ou chimão, minha mãe preparou um portentoso copo de vitamina de banana com Nescau e açúcar, daquelas vitaminas que, de tão grossas e fortes, o liquidificador tinha dificuldade em triturar a fruta e fazia um ruído semelhante a um arroto em ondas prolongadas... uóóóuuuóóó.
  
E, estendendo o copo de vitamina na direção de Toinho, advertiu-lhe preventivamente: "Preste atenção, Antônio. Tome isso aqui e não se atreva a ficar chimando nem pedindo coisa alguma na casa de Beré, viu? Isso é muito feio e, se você ficar lá chimando, você vai ver quando a gente voltar para casa." 

E ela concluiu: "Se você me desobedecer, eu te dou uma surra, tá ouvindo? Eu não quero que você aceite coisa alguma, nem se ela te oferecer, entendeu?".

Toinho sabia muito bem o que poderia lhe acontecer quando minha mãe fazia aquelas advertências e, com os olhos saltando das órbitas de tanto temor, timidamente assentiu com a cabeça.

O detalhe é que isso era dito com minha mãe segurando a orelha de Toinho. Ela sempre se irritava porque não conseguia segurar firmemente a orelha dele. Parecia que, quando ele estava prestes a levar um reprimenda, as quais vinham invariavelmente acompanhadas de um puxão de orelha, Toinho untava suas orelhas.  

Mas, apesar de tudo, aquele copo reforçado de vitamina não era páreo para o sequioso estômago de Toinho que logo, logo, estaria novamente com fome. Só que - e isso ele sabia muito bem - ele não se atreveria a desobedecer àquele comando de minha mãe em se arriscar a pedir ou chimar nada durante a visita à casa de Beré -, caso contrário, ele sofreria consequências mais sérias que um mero puxão de orelha. Seus olhos arregalados eram a prova de que ele tinha entendido muito bem o recado que minha mãe quis dar. E preparou seu espírito para não desobedecê-la.

E foram os dois visitar Beré. Do meio para o fim daquela visita, eis que Beré diz. "Iolanda, aceita um cafezinho, um suquinho ou um refrigerante?". E, virando-se para Toinho, estando este novamente morto de vontade de comer alguma coisa, muito embora Toinho não estivesse necessariamente com fome, Beré disse: "E você, Antônio, quer um Guaraná, um bolinho, um pastel, meu filho...".

Naquele instante, lembrando das palavras da preleção que minha mãe lhe dera e, fazendo um gesto negativo com a cabeça, Toinho recusou a oferta. Dona Beré, insistiu: "Vamos, tome, meu filho, é Guaraná, tá geladinho!". 

Naquele ato, Toinho travava uma luta interior de proporções épicas, porque ele queria mais que tudo tomar aquele copo borbulhante de refrigerante, saborear aquele aromático pastel, mas as ordens recebidas eram de uma penalidade tão forte que ele não se atreveria desobedecer. Ele se lembrou que sua mãe lhe dissera de que não era sequer para aceitar qualquer oferta. "Não, obrigado, dona Berenice", disse Toinho em uma intonação formal, mas pouco convincente.

Depois de dona Berenice muito insistir com Toinho, minha mãe, já se sentido constrangida com as recusas de Toinho, terminou por autorizar Toinho a aceitar. "Vá, Antônio, aceite um guaraná". Ela estava sendo sincera naquele instante. 

Mas Toinho entendera que minha mãe estava apenas fazendo média com sua amiga Beré. Na cabeça dele, o que estava valendo, mesmo, era a advertência que minha mãe fizera em casa antes de sair para aquela visita. "Não aceite nada nem se ela oferecer....!" ecoava em seu juízo.

Agora eram a duas, Beré e  minha mãe, insistindo com Toinho. E ele pensava: "Será que ela tá falando a verdade ou se eu aceitar vou levar uma surra como ela prometeu?" 

Que dúvida terrível tinha Toinho. E minha mãe insistia já em tom imperativo: "Aceite menino!" e Toinho recusava: "Não estou com fome. Obrigado" E dona Beré retrucava, "Então coma um pastelzinho!". "Não obrigado, dona Beré", mantinha-se determinado Toinho. "Aceite, Antônio!", ordenava minha mãe. E tome dúvida na cabeça de Toinho...

Por fim Toinho resolveu optar por não aceitar mesmo nada. Ninguém faria ele comer pastel ou tomar refrigerante naquela tarde. Não queria correr o risco de levar uma surra quando chegasse em casa! Mas a situação ficou tão constrangedora, tão constrangedora, que Beré chegou a indagar: "Iolanda, o que esse menino tem?", para o desconserto total de minha mãe. "Não sei, Beré."

Quando chegaram em casa, Toinho aliviado e certo de que cumprira à risca o que pedira minha mãe, não entendeu nada quando ela lhe pegou firme pela orelha escorregadia e lhe disse: "Nunca mais me faça passar outra vergonha dessas, viu?". Pode?

VOLNEY AMARAL

(1) sujeito ou bicho que pede sem dizer nada; fica parado se insinuando diante do objeto de desejo com contemplação, que é geralmente comida.

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