ILUSÃO IDIÓTICA

Minha esposa é uma excelente dermatologista. Já estou afirmando isto dando um desconto da minha parcialidade. 

Apesar de ela preferir a clínica à estética dermatológica, em seu consultório é inevitável a crescente procura de pessoas por terapias estéticas, aplicações de Botox, de laser, luz pulsada e outras dessas ferramentas que embelezam ou que se contrapõem à inexorável ação do tempo, principalmente no rosto das pessoas.

Havia meses que ela vinha me perguntando se eu não queria aplicar um pouco de Botox no rosto. Sempre que isso acontecia eu me indagava em pensamento: "Será que minha cara tá tão feia assim?" Um outro dia, quando eu exteriorizei esta pergunta, ela me justificou que às vezes sobravam alguns mililitros de Botox e que, se não fossem usados, perderiam a validade, pois, uma vez utilizado, não é aconselhável permitir o decurso do tempo sem utilização daquele produto.

Frouxo quando encaro uma agulha vindo em minha direção, resisti o quanto pude, até que um dia, finalmente, cedi, aceitando aplicar "só um pouquinho na testa", onde coleciono rugas desde jovem, consequência de dois fatores: de tanto fazer expressões de riso e a ação do sol a que, até conhecê-la, eu me permitia me submeter sem sofrer qualquer admoestação por parte dela.

Por sorte, a evolução da tecnologia de fabricação de agulhas de injeção resultou na disponibilidade de espécies muito fininhas. Lembro-me que essa minha, digamos, agulhofobia, se me permitem o neologismo, remonta minha infância em Pão de Açúcar, em que tínhamos que nos submeter às aplicações de antibióticos para curar amigdalites, dentre outros males, aplicados por seu João da Farmácia, utilizando-se daqueles temidos estojos metálicos de injeção. 

Antigamente - e certamente essa minha ojeriza remonta aqueles idos - as agulhas, reutilizáveis depois de esterilizadas, eram grossas pela própria natureza, e cegas, para não utilizar o termo rombudas. Lembro-me que, apesar de franzino, eu vendia caro ter que me submeter a uma aplicação de injeção: me escondia, corria, me esperneava, até finalmente ser pego, imobilizado e entregue ao meu carrasco. Nessa situação, só me restava berrar, quando não me tampavam a boca, tamanho o escândalo que eu fazia, até que a injeção finalmente terminasse com a retirada, igualmente dolorosa, daquela agulha rombuda!

Então, veio a hora de aplicar o Botox. Lu trouxe uma dessas seringas de aplicar insulina, algodão, o frasquinho de Botox e tudo o mais. Sentado na cama, em nosso quarto, Lu se posicionou à minha frente e pôs-se a marcar os pontos de aplicação em minha testa, usando uma caneta de tinta delével. 

Após isso, fixou a agulha no corpo da seringa, extraiu o líquido rico em toxina botulínica e dirigiu-a à minha testa. A essa altura, a adrenalina, já em nível um pouco elevado em minha corrente sanguínea, fez meu ritmo cardíaco subir. Jurei para mim mesmo nunca mais repetir "De graça até injeção na testa!" como forma de valorizar aquisições graciosas.

Para diminuir minha ansiedade, fechei os olhos e esperei as espetadas. "Até que não estão sendo tão dolorosas assim!", pensei comigo mesmo, enquanto Lu trabalhava, mas me mantive de olhos fechados, afinal seria cerca de uma dezena de picadas.

Terminada a aplicação, estando eu de olhos ainda cerrados, Lu se dirigiu ao banheiro de nosso quarto para dispor do material descartável. Quando ela pisou no pedal que abre a lixeirinha do banheiro, ouviu o pavoroso grito que eu soltei ao abrir os olhos no quarto: "Lu, estou cego do olho esquerdo!".

De fato, quando eu abri os olhos após a aplicação, a visão de meu olho esquerdo era como se houvesse uma nuvem branca e não a imagem nítida, clara e focada que o olho direito via! Sobressaltada, Lu apressou-se a voltar para o quarto e, logo ao chegar à porta do banheiro e me ver, soltou uma gargalhada de alívio.

A nuvem branca que obnubilava minha visão do olho esquerdo era, na verdade, o chumaço de algodão que ela deixara fixado em minha testa para estancar o sangue que vertera ao uma das picadas da agulha atingir uma pequena artéria em minha testa, fato comum em aplicações desse tipo. O algodão se desprendera e se enroscara em minha sobrancelha, próximo ao olho, bloqueando a visão, dando um efeito de nevoeiro e causando aquela ilusão (idiótica) de cegueira que tanto me aterrorizou!

A sessão mesoterápica terminou em várias ondas de gargalhadas!

VOLNEY AMARAL

Obs.: a palavra "idiótica" é outro neologismo deste texto.

Comentários



  1. Volney, muito bom os seus escritos. Leves de se ler, trazem conteúdos e registros do cotidiano com os quais muitos de nós se identificam. Legal!

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  2. Oh, Cida! Que bom reencontrá-la por aqui. Um abraço. Obrigado.

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