FRANGALHOS CORPORATION

Ao iniciar a escrever este artigo, os versos dessa canção logo vieram à minha mente: 

"Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim 
Dentro de mim mora um anjo..." 

Não sou, necessariamente, um anjo e nem é exatamente a esse aspecto da letra da canção(1) que me refiro. Muitas vezes as pessoas só conhecem parte da nossa vida, ou apenas nos conhecem da metade da nossa vida em diante, em uma determinada situação social ou econômica, mas não sabem pelo quê já passamos para termos chegado onde agora estamos, seja a situação atual boa ou ruim.

Viver situações de necessidade, de privações, de dificuldades, não vou negar, é algo indesejável, árduo, marcante. Mas é exatamente nessas situações que nossa alma se fortalece e nossa vida se enriquece de experiências. A adversidade geralmente nos impulsiona a reagir, a sair do marasmo, da inércia, em busca da respiração salvadora à tona, a encontrar a luz no fim do túnel, a alcançar a libertação.

E quando passada a época atribulada, a experiência vivida é um valor substancial que você agrega a sua vida, tornando a pessoa um pouco mais resistente às variações que a vida causa.

Na segunda metade dos anos 80, embora já formado em Direito, mas sem ter ainda me submetido ao Exame de Ordem ou ao Estágio Profissionalizante, eu já trabalhava há cerca de dois anos na Embratel, posto que consegui por concurso público logo após ter colado grau em Direito, e cujo emprego avidamente assumi para não passar de estudante a desempregado da noite para o dia.

Mas, após trabalhar por quase dois anos na Embratel, eu me via ameaçado de me tornar uma pessoa acomodada e não exercer a profissão que tanto adoro e para o quê eu tinha estudado a vida toda. 

Então, com o apoio de minha então namorada Luciane, resolvi deixar aquele emprego relativamente bom, aquela estabilidade relativa, para fazer o Estágio Profissionalizante.

Ocorre que, por conta de fatores alheios à minha vontade, como, por exemplo, uma greve na universidade federal, o início do estágio foi postergado por quase seis meses. Nesse período, amarguei as dificuldades a que me referi lá em cima. 

Eu e alguns de meus irmãos e irmãs já trabalháramos vendendo balas de confeito, chicletes Ploc e Adams, caramelos Zorro e chocolates em tabuleiros ambulantes na feira em Pão de Açúcar. Outros foram balconistas, porteiros do cinema, bilheteira, tudo na tenra idade, coisa que, hoje, daria um processo por exploração de mão de obra infantil para meu pai.

Os tempos ficaram dificílimos para mim, do ponto de vista econômico, já que o que eu ganhava apenas como professor de inglês não cobria meus custos. Bateu um "liseu", uma "dureza" e eu tinha meus compromissos pessoais e com minha casa. Eu tinha que arranjar uma fonte de renda imediata, enquanto o Estágio Profissionalizante não se iniciava e eu não adquiria minha carteira de advogado da OAB. 

Nesse momento veio uma oportunidade de ganhar algum dinheiro.

Meu cunhado adquirira uma granja em Rio Largo e montara um abatedouro. Ele tanto vendia em grosso, como vendia no varejos para a comunidade circunvizinha da granja.

Já meu irmão Mosart possuía uma Picape Ford Pampa cor de goiaba que eu confisquei para esse serviço. Eu só tinha que fazer a ponte entre os frangos da granja de meu cunhado e a clientela (que eu ainda tinha que arranjar). A necessidade e a oportunidade nos trouxe a ideia. Nossa determinação e dignidade nos serviram de combustível 

Naqueles tempos, não existiam esses serviços de entrega que são tão comuns hoje em dia, os "deliveries". Então resolvemos vender frangos on demand e home delivery, ó? Coisa moderníssima e inédita naquela época. Pensa que era tão fácil assim? Tive que vender às pessoas que eu mais conhecia: os amigos, os ex-colegas de trabalho da Embratel e outros simplesmente conhecidos.

E foi assim que, superando todo constrangimento e vergonha, passei a ser desempregado e vendedor de frango abatido justamente para pessoas com quem eu trabalhava ou me relacionava em um nível meramente social.

Havia outro problema: a granja tinha um abatedouro, mas o abatedouro não tinha empregados. Adivinhem quem eram os matadores, degoladores e esfoladores de frangos? Eu e Lu!!!! Por semana eram cerca de 300 frangos abatidos que vendíamos. E haja cortar pescoço, sangrar, depenar, arrancar as vísceras... Se fazer isso for pecado, eu devo estar com um saldo muito negativo com Deus, mas quero seu perdão!

Nessa época não faltavam uns trocados no bolso. Abrimos até uma conta conjunta no ITAÚ, já avançado em tecnologia touch screen em seus caixas de autoatendimento. 

Luis Belo, amigo, ex-companheiro de trabalho na Embratel e cliente de nossas vendas, em tom zombeteiro, batizou nossa empresa informal com o nome de "Frangalhos Corporation Limited". Mas coube a André Bechtinger Simon, outro colega de trabalho, sugerir a troca de "Limited" para "Ilimited" (com ênfase na pronúncia) para dar um toque marketeiro ao nome, como a sugerir que nossa "corporação frangalhos" não tinha limites!

Superei essas dificuldades com muita dignidade, bom humor e, cá para nós, muito bem acompanhado: Deus e Lu estavam sempre ao meu lado!

Hoje, digo que a palavra "Frangalhos" não tinha nada a ver com "frangos", mas com meu estado físico após cada dia de trabalho!

Para muitos que convivem comigo, que me conhecem apenas pela metade, talvez agora faça sentido o que eu disse acima:

"Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim
Dentro de mim mora um anjo..."(1)


VOLNEY AMARAL


(1) Dentro de mim mora um anjo (canção de Sueli Costa e Cacaso)
(2) Naquela época eram previstas pela Lei 4.215 essas duas modalidades de ingresso na OAB, o que só veio a mudar com o novo Estatuto da OAB e da Advocacia - Lei 8.906/94)







Comentários

  1. Você é sempre surpreendente Volney.
    Mas essa da Lu, uma pessoa tão delicada, degolando os pobres franguinhos, é quase inacreditável.

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  2. Você é sempre surpreendente,Volney.
    Mas essa da Lu, uma pessoa tão delicada, degolando os pobres franguinhos, é quase inacreditável.


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  3. Com aquela vozinha ela chegou longe! rsrsrs O anjo da canção é a Lu.

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