ANJOS E DEMÔNIOS

Se você tem, hoje, menos de 40 anos, muito provavelmente estarei falando sobre algo que ainda não tinha conhecimento, mas que irá instigá-lo.

Sabemos que, hoje em dia, a televisão conseguiu banalizar a vida, a violência e até a tragédia. Antigamente falava-se no "Padrão Globo de Qualidade", cultura implantada na Globo por Walter Clark nos anos 70, nos proporcionava uma televisão de qualidade muito melhor que a Globo atual. 

Mas, com o aparecimento de canais concorrentes que exploram a curiosidade humana e sua sórdida atração pelo bizarro, pelo horror, pela violência, os programas de maior audiência, hoje em dia, são aqueles que mostram bandidos flagrados pelas câmeras de vigilância assaltando e quase sempre assassinando pessoas.

O que se banalizou foi, na verdade, o ato de se mostrar essa crueldade na telinha, sem advertência alguma do apresentador; foi trazer para dentro de nossa casa sons e imagens que elevam nossa pressão arterial e nos causam estresse, ainda que tenhamos dificuldade de mudar de canal quando uma cena horrível de um assassinato está para ser mostrada. O estupro, o assassinato a sangue frio, a crueldade, a barbárie, estão dentro de nossa sala via televisão. Cada dia assisto menos os noticiários.

Em agosto de 1973, época mais violenta da ditadura militar, em que ocorriam sequestros e as pessoas não podiam sequer comentar publicamente sobre isso, ocorreu no Brasil um dos mais tristes, rumorosos e inesquecíveis episódios que a crônica policial nacional jamais presenciara ou que jamais viria a ter oportunidade de acompanhar: o Caso Carlinhos. Falo assim, com letras maiúsculas, porque, pelas suas peculiaridades e desenrolar, o fato merece tal tratamento. 

A esse fato, contudo, jamais se deu um viés político, é bom que se frise. Citei os sequestros porque eu jamais tinha ouvido falar, com atenção, ou presenciado ou entendido perfeitamente o significado mais completo da palavra "sequestro" e da monstruosidade que constitui essa forma bestial de crime, até o dia que me deparei com a foto daquela linda criança, com carinha de anjo, cabelo de playboy e sorriso sapeca, como vocês vêem abaixo, de cujo semblante vocês, também, jamais se esquecerão: 



Os jornais de todo o Brasil noticiavam o sequestro desse menino carioca de nome Carlinhos (Carlos Ramires), de 10 anos de idade, levado à força de dentro de sua casa por um homem que cobria seu rosto, sequestro perpetrado na presença de seus irmãos e irmãs, com quem assistia TV em plena sala de sua casa.

Não houve quem não se comovesse com esse caso. O Brasil inteiro acompanhou o caso com a respiração suspensa e à espera de um desfecho feliz. Os bandidos teriam deixado um bilhete estabelecendo o valor do resgate, estabelecendo data e local para seu pagamento, 

A informação vazou para a imprensa que montou campana nas proximidades, chegando ao absurdo de fazer inserções ao vivo na programação para presenciar a reivindicação da quantia do resgate. Obviamente ninguém apareceu para apanhar o dinheiro e, depois disso, Carlinhos jamais foi encontrado. 

Dezenas de versões foram consideradas pela polícia, inclusive com a suspeição de seu pai, de sua mãe, de empregados da fábrica do seu pai e de outros suspeitos. Procedentes ou não, as suspeitas jamais foram confirmadas, mas os suspeitos sofreram as consequências disso.

A família de Carlinhos obviamente se desintegrou psicologicamente. O casamento dos pais de Carlinhos, ante às suspeitas se desgastou ao ponto de eles se separarem. Outros suspeitos foram presos e amargaram por meses a prisão. Houve até quem fosse condenado, mas que conseguiu anular o processo tempos depois!

A mãe de Carlinhos recebia telefones e bilhetes com pistas falsas, trotes sórdidos, que reascendiam as esperanças dela e de todos, mas que se ofuscavam num mar de decepção ante à descoberta da verdade.

Angustio-me a imaginar sua mãe, presa a esse túmulo de vida. Seu pai, ainda vivendo a desconfiança de todos. Seus irmãozinhos ainda à procura de encontrar Carlinhos, ainda que fossem seus restos mortais.

Ah, como eu gostaria de, de repente, encontrá-lo vivo ou morto e entregá-lo a seus familiares!

Se Carlinhos jamais foi encontrado, nós que vivemos aqueles tempos também jamais nos esquecemos daquele rostinho angelical. Jamais fui o mesmo depois de ter a percepção da monstruosidade que a maldade humana pode alcançar. 

Hoje, passadas 4 décadas(1), ele não envelheceu, e tornou-se alguém como um filho ou um irmãozinho meu, ou alguém que me faz lembrar os filhos que tenho e que tanto amo.

Também não envelheceram as palavras da canção que fazia sucesso naqueles tempos, atual ainda nos dias de hoje:

"...Animais, animais, nós os homens somos todos meio animais irracionais..."(2)

VOLNEY AMARAL



Saiba mais sobre o Caso Carlinhos visitando estes sites, dentre outros:

(1) O CASO CARLINHOS - ARQUIVO TV GLOBO

(2) Canção "Animais Irracionais" da dupla Dom e Ravel

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