TROTE NO ALISTAMENTO MILITAR


Por estes dias, levei meu filho mais velho para cumprir seu dever cívico de fazer o alistamento militar. Guardador de memórias pitorescas, não evitei relembrar do meu tempo, das histórias que me contaram e daquelas que eu mesmo testemunhei acerca do alistamento militar.

A primeira coisa que me chamou a atenção foi a forma hoje adotada, completamente diferente daquela dos anos 70. Na minha época, a coisa era bastante complicada. E as histórias engraçadas que presenciei e ouvi são fruto do comportamento vingativo dos recrutas, já veteranos, em relação àqueles que estavam prestes a passar pelos rigores do serviço militar. "Se nós tivemos que pagar micos, os novos recrutas passarão pelos mesmos trotes!", deviam pensar os soldados rasos daqueles tempos.

As diferenças começam pelo horário e pelo local de alistamento: tínhamos que estar no Quartel do Exército (então o 20º BC -  Batalhão de Caçadores, hoje o 59º BIMtz - Batalhão de Infantaria Motorizada)  às 5 horas da manhã!


Naquela época áurea do poder militar no Brasil, entrar em um estabelecimento militar era algo que impunha uma grande dose de respeito, medo e formalidade.

Quem me alertou para fazer o alistamento militar foi meu amigo de saudosa memória, Zeca Hora, figura muito conhecida em Maceió, mercê de seu jeito de ser. Sua gaitada, ouvida à distância, denunciava sua presença em qualquer ambiente.

Zeca era uma pessoa divertidíssima e cheia cacoetes, frases de efeito, manias. E era amado por todos que o conheciam. Costumava conversar repousando a mão no ombro de seus interlocutores, chamava todos de "meu amiguinho", conhecia muita gente. Foi um servidor da Assembleia Legislativa por longos anos. Era um azulino de corpo e alma. Seu aniversário, 07/09, era coincidente com o aniversário de seu querido CSA. Ele adorava figurar como mascote, mesmo já grandalhão, com 16, 17 anos, quando o azulão entrava em campo; e era capaz de invadir o gramado para comemorar um gol, dando cambalhotas no tapete verde do Rei Pelé.

Às 4:45h daquela manhã, todos os moradores da minha modesta casa da Praça do Pirulito foram acordados com as insistentes e repetidas batidas na porta: "Toc, toc, toc, Volney, Volney! Volney!" até que minha mãe atendeu e me acordou. Era Zeca Hora cumprindo o que prometera no dia anterior: buscar-me para irmos juntos ao alistamento militar.

Chegando ao quartel do 20º BC, encaminharam-nos a um pátio onde havia algumas árvores que soltavam folhas, talvez pela estação, onde já havia dezenas de outros jovens alistantes, todos igualmente sonolentos e muitos em jejum, como nós! 

Naquela época, ser escolhido para servir ao exército era uma roleta russa do tipo quatro balas para um tambor que cabia cinco. Ou seja, a probabilidade de você ter que servir ao exército era considerável. Muitos jovens queriam servir, mas nós achávamos aquilo um atraso de vida, afora os rigores e os perigos que os recrutas sofriam, histórias que sabíamos pelo relatos nossos irmãos e amigos, obviamente com exageros em alguns detalhes.

Mas havíamos colhido informações "privilegiadas e úteis" sobre o alistamento no Exército. Por exemplo: se o candidato a recruta tivesse alguma habilidade de datilografia, ou soubesse dirigir automóveis, ou cozinhar, etc., ele teria grandes chances de ser aproveitado nos serviços correspondentes: poderia ser um auxiliar administrativo nos serviços burocráticos do exército, seria motorista dos caminhões ou dos Jeep's do quartel, ou iria trabalhar na cozinha, preparando o rancho da tropa.

Isso significava que, se você tivesse uma dessas qualificações úteis ao serviço militar, você poderia ter alguns privilégios quando fosse servir, tais como ser menos exigido em exercícios, missões, operações e treinamentos em comparação com os recrutas desqualificados. Em outras palavras, você sofreria menos que os outros.

Zeca Hora já sabia dirigir desde os 16 anos e só esperava a chance para esbanjar sua habilidade de motorista para a remota hipótese que admitia: servir ao Exército. Mas perdeu o primeiro páreo quando um recruta se aproximou da pequena multidão de alistandos perguntando: 

- Algum de vocês sabe dirigir?

Um incauto mais apressado logo levantou o braço 

- Eu sei, senhor!
- Me acompanhe!ordenou o recruta, dando meia volta e sumindo de nossa vista, seguido pelo orgulhoso candidato a motorista. Naquela hora Zeca maldisse sua inércia! 

Daí a pouco, eis que os dois retornam caminhando, o recruta à frente e o alistando logo atrás, seguindo-o, este último dirigindo um carrinho de mão, desses de construção civil, com um ciscador e uma pá em cima. Não preciso dizer que o pobre jovem teve que juntar as folhas caídas e transportá-las no carrinho de mão!

A maioria não conteve uma discreta gargalhada seguida de comentários picantes, ainda que todos tivessem receio inclusive de gargalhar naquele ambiente circunspecto que era o militar.

Zeca Hora, embora não quisesse servir, e aliviado por não ter pago aquele mico, esperava a verdadeira chance de anunciar seus dons ao volante, caso viesse ser incorporado obrigatoriamente ao serviço militar.

Depois de um primeiro exame biométrico, cercado dos naturais constrangimentos de ficarmos nus, em um ambiente coletivo, cheio de militares e outros jovens por todos os lados, deixando à mostra não só sua genitália, como também os glúteos e suas adjacências, fomos aguardar em outro pátio o desenrolar do procedimento do alistamento.

Daí a pouco um outro recruta se aproxima em um Jeep, desliga o veículo e vocifera:

Algum de vocês, aí, sabe dirigir um Jeep?"

A princípio ninguém quis se candidatar a passar por outro vexame. Mas Zeca Hora pensou: "Agora é sério"

- Eu sei! ,  Zeca atreveu-se a dizer, levantando a mão e chamando a atenção de todos os demais.

- Tem certeza que sabe?! -, vociferou novamente o militar.
- Sei, sim senhor!, disse Zeca Hora já com uma dose de timidez e arrependimento.
- Tem certeza mesmo? - perguntou novamente o recruta, já com uma voz firme e ameaçadora, fazendo Zeca se arrepender de verdade.
- Então entre nesse Jeep aí, ligue-o e vamos dar uma volta no quartel para ver se você sabe mesmo!", disse o militar, alojando-se no banco do carona. 

Zeca Hora contornou o Jeep verde oliva e sentou-se no banco do motorista. Nessa hora, a pequena multidão de alistandos, curiosa, aproximou-se do Jeep para ver a performance de Zeca Hora.

Os Jeeps costumavam ter três alavancas de marchas, conforme se vê da figura abaixo, sendo que 90% das pessoas naquela época sequer sabiam para que serviam as duas alavancas menores. Hoje, com a popularização dos carros off-road, é fácil saber, apenas olhando a figura abaixo. 



- Ligue o Jeep. -  ordenou o recruta.

Zeca pisou fundo na embreagem, manuseou a alavanca maior para frente e para trás, parando na posição intermediária para checar que o Jeep estava mesmo em "ponto morto" e girou a chave. Nhein-nhein-nhein-xique-xique-xique-xique-Vrrrrrrummmmm! O Jeep pegou mais fácil que doença venérea no baixo meretrício naquela época!

Nós, espectadores, aproximamo-nos ainda mais da porta do Jeep para ver os detalhes, eu todo orgulhoso e invejoso das habilidades do meu amigo Zeca Hora.

- Engate a 1ª e vamos dar uma volta. - disse o soldado, ao que Zeca Hora obedeceu.

Ficamos sabendo depois, mas, sem que ninguém percebesse, o sem-vergonha do recruta já havia mexido na alavanca menor (a da direita na figura acima), colocando-a na posição "NEU" (neutro, marcha que neutralizava toda força motriz do Jeep, não importava em qual marcha estivesse), cuja posição ou utilidade ninguém sequer olhava, porque eram alavancas desusadas!. 

Zeca deu duas aceleradas curtas para aumentar o giro do motor do Jeep, seguidas de outra um pouco mais forte, concomitante com a liberação do pedal de embreagem, para iniciar o movimento do Jeep.

Vrrrrrrrrruuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuummmmmmmmmmmmm! O Jeep não saiu do lugar!

- Você não disse que sabia dirigir um Jeep? - o recruta indagou a Zeca.
- Mas eu sei! jurou Zeca Hora. 
- Então tente de novo! assentiu o soldado raso.

Vrrrrrrrrruuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuummmmmmmmmmmmm! E o Jeep, mais uma vez, não saiu do lugar! Aí já teve até vaia, não é?

O soldado então disse:

- Desligue o Jeep e diga ao cabo ali que eu mandei você dizer a ele que você NÃO SABE DIRIGIR UM JEEP! 

Zeca apeou do Jeep e, todo constrangido, dirigiu-se ao cabo:

- O... o... o... soldado mandou dizer que... que.. eu dissesse ao senhor que eu... eu... não sei dirigir...

- Pois você sabe, sim, dirigir um Jeep! - retrucou o cabo. - Volte lá e diga ao soldado que eu mandei você dizer a ele que você sabe, sim dirigir um Jeep. 

Quando Zeca voltou ao soldado no Jeep, sob o acompanhamento de nossos olhares, o soldado já tinha tirado a alavanca da posição "NEU" e colocado na posição "NOR" (Normal - ou seja, a força motriz agora estava restabelecida). 

- O cabo mandou dizer que... que... eu dissesse ao senhor que eu s.. s... sei dirigir, sim... - disse Zeca Hora, todo constrangido.

- Então entre aí de novo e prove que sabe!  - desafiou o soldado.

Quando Zeca tentou sair com o Jeep pela segunda vez, já estava achando que na vez anterior acelerara pouco, única explicação plausível, em seu raciocínio, por que o Jeep não saíra do lugar, planejando, então, acelerar mais fundo, desta vez.

Então, ele ligou o Jeep, debreou de novo, engatou a 1ª marcha e mandou brasa no acelerador, soltando o pedal da embreagem para liberar a força motriz do carro.

O Jeep, já com a força motriz de seus 75 cavalos efetiva, deu um pinote para a frente, quase ficando só com as rodas traseiras no chão, quase atropelando quem estava por perto; e saiu feito um cavalo de rodeio dando popas por uns 10 metros até se estabilizar, sob novas vaias de molecagem incontida dos presentes. Foi muito engraçada a cena!

Zeca Hora teve sorte e azar, ao mesmo tempo, nisso tudo. Sabe a roleta russo que eu mencionei no início do texto? Pois é: ele teve que servir ao exército compulsoriamente. Mas acabou por aprender para que servem todas as alavancas de marchas do Jeep! Se deu bem com seu jeito cativante e divertido. Suas habilidades de motorista foram bem aproveitadas no quartel.

Eu me livrei de servir ao Exército sob a justificativa de "excesso de contingente" que eles estamparam em meu Certificado de Dispensa de Incorporação, mas acho que foi porque eu era magro demais para aguentar dar um tiro com um FAL, e os caras lá não davam muito crédito a recrutas esquálidos.

Ô saudade daquele querido e divertido amigo! Que Deus aproveite os teus talentos aí em cima, Zeca Hora!

VOLNEY AMARAL
30/06/2015 (baseado em fatos reais).


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