NOSSA TRISTE PARTIDA HÁ 50 ANOS


Há histórias de dias e eventos que guardamos na memória para sorrir, chorar ou, independentemente disso, para jamais esquecer! Jamais esquecerei aquele dia 26 de julho de 1970!
No dia anterior àquele 26 de julho de 1970, meu pai foi à nossa casa e anunciou: "Vai ser amanhã. Arrumem tudo!". Iríamos mudar de nossa pequenina e cálida Pão de Açúcar para a capital Maceió.
Sob o ponto de vista de uma criança de 10 anos recém completados, aquilo tudo parecia uma grande aventura! E viria ser mesmo uma aventura! Seria um daquelas jornadas epopeicas capazes de promover uma virada, quem sabe positiva, em nossas vidas, ou inviabilizá-las de uma vez por todas. Era, de fato, um salto no escuro, mas era a única alternativa que tínhamos.
Ainda assim, meio sem ter uma completa noção das coisas, eu estava excitadíssimo com a iminência de fazer aquela viagem.
Minha mãe, juntamente com meus irmãos Zezinho e Célia, já tinha sido despachada antecipadamente havia alguns dias. O resto de nós estava a aguardar a disponibilidade do caminhão de seu Nozinho, um Mercedes Benz 1111 azul para o transporte de nossas tralhas juntamente conosco.
Para entender perfeitamente a dimensão desse drama, mister se faz que o leitor tenha uma visão o contexto sócio-cultural-econômico em que vivíamos naqueles tempos.
Não tínhamos muitas alternativas. Nossa vida em Pão de Açúcar se deteriorara econômica e socialmente ao ponto de nossa permanência naquela cidade ter se tornado absolutamente inviável. Meu pai, outrora um dos mais sólidos comerciantes locais, e que já fora proprietário de lojas e do cinema da cidade, chegara ao fundo do poço, levando-nos de roldão.
Do ponto de vista de costumes, a sensação que eu tinha era de que Pão de Açúcar era uma cidade evoluída, avançada, para aquele tempo e lugar. Mas um traço forte do conservadorismo machista era o fato de ser do conhecimento público que muitos homens exerciam a infidelidade sem, contudo, abandonar o lar, os filhos e a esposa traída.
Meu pai, infelizmente, se incluía nesse grupo, mas, num aspecto crucial, não agiu como a maioria dos homens da cidade naquela época. Para a desgraça de minha mãe e de nós, seus 8 filhos, meu pai resolvera sair de casa, de mala e cuia, para montar uma nova família - um escândalo social de proporções mastodônticas que toda a cidade, pelo seu tamanho reduzido, tomara conhecimento.
Diante daquele estado de coisas e de nossa bancarrota sócio-econômica, permanecer morando em Pão de Açúcar era muito degradante para todos nós. Minha mãe, publicamente humilhada, traída e abandonada, apesar de sua jovial beleza, cujos traços ainda conserva, havia sido afinal derrotada afetivamente pelas infidelidades recorrentes de meu pai.
As perspectivas econômicas da cidade naquela mudança de década também não eram alvissareiras. A seca e a situação econômica do país, que já vinham piorando a cada ano, só viriam a ter um revés, ainda assim questionável, a médio prazo. Por outros motivos, que não os sociais, uma outra família - os Brito - já se mudara parcialmente para Maceió. Um de seus membro era muito meu amiguinho o, o Rudi, cuja partida já representara para mim uma perda.
Naqueles tempos de vacas magras, em nossa mesa já não tínhamos comida em quantidade e qualidade adequadas. Nossas roupas, agora somente compradas nas festas de Natal, tinham que servir, também, para Ano Novo e Festa de Reis. Mais que isso, tinham que passar de irmão para irmão, até não mais servirem para ninguém. Era nossa forma de economizar.
Nessa onda eu me dei mal: como, dentre os 3 mais jovens, eu era o irmão do meio, eu pegava muito as sobras das roupas e calçados de Mosart. Ou, então, para durarem muito, as roupas e calçados de cada um eram comprados em tamanho maior que o número de nosso manequim da época, pois, como estávamos em crescimento, logo as roupas e calçados não estariam servindo. Por conta disso, ou eu "herdava" as roupas e calçados já usados por Mosart, ou eu ganhava roupas e calçados novos, mas de número maior (para servirem por mais tempo). Era meio difícil para eu andar na moda!
Sem ter o pai provedor vivendo em casa desde já há 5 anos, outra família e outras pessoas que, em nosso detrimento, se beneficiaram da presença marital e paternal, da boa alimentação, da segurança, e do aconchego paterno. Desde então, jamais pudemos sequer dar um "Boa noite, papai!" ou pedir-lhe a bênção antes de irmos dormir! Isso era uma das coisas que eu mais me ressentia e de que jurei jamais privar meus filhos! Obviamente, os filhos gerados nessa outra família culpa nenhuma têm dos atos de terceiros, é bom que se frise.
Estávamos num barco à deriva, no meio do oceano e com poucas perspectivas, definhando, empobrecendo, mal alimentados, maltrapilhos, decadentes, humilhados, e preteridos econômica e socialmente em nosso terrinha.
Por sorte, estávamos sendo muito bem educados por nossa mãe em casa, e tínhamos tido uma excelente base de educação formal em Pão de Açúcar, pelas mãos das nossas inesquecíveis professoras dona Mercedes, dona Maria Duarte, dona Maria Tavares, dona Carmelita Pinto, dona Ivanise Duarte, dentre outras, sem esquecer das palmatórias de dona Clarice, das quais me livrei, a quem eu e meus irmãos e irmãs seremos eternamente gratos e cuja dívida de gratidão será sempre absolutamente impagável!
Assistíamos ao sofrimento diário de nossa mãe. Era um sofrimento de paixão pelo amor do marido perdido, pela situação de dependência econômica e afetiva. Era um sofrimento que, às vezes, era mitigado pelas profecias que nunca se concretizariam "Ele vai voltar, Iolanda, tenha paciência; tenha fé!". Durante longos anos, sua paixão pelo único homem que conhecera como mulher se manteria inabalável, até se transformar em sentimento de ódio e repulsa.
Cartas anônimas eram um mecanismo de informação e contra-informação de nossa desgraça. Umas eram enviadas de boa-fé, para alertá-la das travessuras amorosas e extraconjugais de nosso pai. Outras, de nítida má-fé, tinham o fito único de desagregar, desunir, provocar brigas de ciúmes, só para abreviar sua separação. Eram despachos de macumba, sapos com os olhos e bocas costurados, um degradante e macabro espetáculo para justificar, talvez, a grande luta pela sobrevivência e pela estabilidade.
Presenciávamos as lágrimas de nossa mãe caírem a cada nova decepção, a cada demonstração de desamor e de indiferença de nosso pai em relação a ela. Mas ela sempre manteve a dignidade. Chorávamos com suas lágrimas e gemíamos com seus gemidos, às vezes sem entender o real motivo ou significado de seus mais tristes sentimentos.
Mas Deus não teria nos abandonado. Ele só nos proporcionou viver e aprender através de lições mais difíceis e por caminhos mais tortuosos, e nos permitiu conhecer os dois lados da vida, ainda cedo, para aperfeiçoarmos nosso caráter e evoluirmos o espírito.
Num último suspiro de misericórdia, nosso pai vendeu a casa que construíra em Pão de Açúcar em 1967 para nos abrigar (ou teria sido para se livrar de oito filhos que reclamavam sua presença e de uma mulher que mendigava seu amor?), e pagou, parcialmente, a compra de uma outra casa em Maceió, onde, a partir daquele dia, iniciaríamos uma nova vida de dificuldades, humilhações, privações, suor e lágrimas. Essa viagem estava prestes a estava prestes a se iniciar!

O dia finalmente chegara!

A cidade já estava sabendo que partiríamos naquele dia. Em Pão de Açúcar as notícias corriam tão rapidamente quanto nestes tempos de internet.
Com o caminhão parado à nossa porta, começamos a carregá-lo com nossas tralhas. A cada minuto, curiosos e amigos vinham e se aproximavam para testemunhar nossa partida. Em pouco tempo creio de 30 a 50 pessoas estavam ali nos assistindo protagonizar aquela cena.
Foi um dia tão marcante para nós que, 50 anos após, ainda lembramos dos detalhes.
Mario Gomes Marinho
um amigo conterrâneo e contato aqui no Facebook, viria a me confessar recentemente que aquele foi também um dia marcante para ele e para os demais amigos de nossa família.
Às 16:00 o caminhão partiu subindo a estrada rumo a Maceió! Cerca de 260Km nos separavam de nosso destino, sendo metade em estrada de barros, esburacada e poeirenta. Deixamos para trás toda uma história de vida até ali, os amigos, os vizinhos e até nosso cachorro Brasinha, um autêntico vira-lata preto, o qual eu não tornaria a ver.
Da carroceria, enquanto o caminhão se distanciava pela estrada, já a uma boa altura, Toinho podia ver a imagem da cidade com uma sensação, um efeito visual, que dava a impressão de que, ao invés de ela se distanciar, a imagem da cidade se aproximava de seu ponto de vista. Na boleia, eu, Dinah, Mosart e Ilma nos acotovelávamos. Nesse dia papai veio nos trazer até Maceió, viajando na carroceria, juntamente com Toinho, Murilo e duas outras pessoas que pegaram carona naquela jornada.
De repente, ao comando de meu pai, o caminhão parou na beira da estrada, sem que nós tivéssemos entendido o porquê, até que vimos as caqueiras de minha mãe com samambaia, comigo-ninguém-pode, peão roxo e espada de São Jorge voarem para o lado da estrada, arremessadas por meu pai, incomodado com a instabilidade das plantas no chacoalhar da carroceria e no vento que a velocidade do caminhão proporcionava. Minha mãe viria reclamar a perda de suas plantas depois.
Com algum tempo de viagem, a noite foi chegando. E após algumas horas, depois de Santana e Cacimbinhas, com a noite já completamente instalada, passamos pela cidade de Palmeira dos Índios,e já com a estrada de asfalto, paramos para dormir. Dormiríamos no caminhão! O motorista armou uma rede na lateral do caminhão, outros usaram os colchões de palha para se aninhar, e nós, eu, Mosart, Ilma e Dinah dormiríamos na boleia.
O céu era aquele pavilhão azul pleno de estrelas cintilantes, cada uma mais bela que a outra. A via láctea estava deslumbrante naquela noite. Do ponto onde paramos para pernoitar, enxergávamos, ao longe, o cintilar das luzes da cidade de Palmeiras dos Índios, disputando com a fluorescência dos vaga-lumes e com o céu estrelado aquele espetáculo noturno de luzes perdidas naquele fim de mundo.
Mas o desconforto e o calor de quatro corpos trancados numa boleia, somados à excitação, me encheram de insônia naquela noite. Nos assombrávamos com qualquer som estranho, imaginando monstros, ladrões, saqueadores à nossa espreita. Não me lembro de ter passado mais que 10 carros por nosso caminhão parado.
Não sei quantas horas havia se passado, Apesar do desconforto, fomos vencidos pelo cansaço e eventualmente cochilávamos. Numa das horas que me acordei, lembro-me, a coisa mais marcante que aconteceu naquela noite foi a majestosa e graúda lua, já em quarto minguante, que começou a surgir no horizonte do lado leste, bem em frente ao para brisa da boleia. Tão linda, tão grande e tão clara que o clarão que antecedeu sua revelação no horizonte nos fez pensar que o dia finalmente estava amanhecendo! Qual nada! A noite estava apenas na sua metade.
Ainda era escuro quando retomamos a viagem. E já amanhecia quando nos deparamos com neblinas próximo a Satuba, com uma temperatura fria para nossos padrões de Pão de Açúcar. Finalmente chegamos à cidade de Maceió, para nós tão grande, tão inédita, tão cheia de novidades, como sinais de trânsito, fonte luminosa de água, palácios, trilho de trem e, dias após, o mar! Marcelo Perete, que anos após também migrou para cá, ao ver as ondas do mar pela primeira vez exclamou: "Que maruadona", comparando-as às pequenas ondas do nosso Rio São Francisco!
Por volta das 8 horas da manhã, finalmente nosso novo endereço foi encontrado pelo motorista. Ali naquela pequena casa de menos de 4m x 16m, com 2 quartos, 1 banheiro 2 salas e um corredor, dona Iolanda aninhou, protegeu, alimentou, educou e terminou de criar seus 8 filhos, sem a presença e ajuda paterna, numa cidade onde não conhecia ninguém, nem tinha parentes.
Foi também a última vez que vi meu pai junto a nós todos de uma só vez. Mais tarde daquele dia, ele se despediria de nós para viver sua outra vida, sua outra família. Os sonhos iam, um a um, se desfazendo e dando lugar às incertezas e medos.
Naquele 26 de julho começamos estes 50 anos que hoje lembramos, em que passamos por muitas privações, dificuldades, humilhações e vergonhas, para, ao final desse tempo, nos constituirmos numa família feliz, realizada e composta de pessoas do bem! Mas isso é uma outra história que dá um livro!

VOLNEY AMARAL

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