EU E A JUMENTA


Categoria: memórias, religião
Classificação: Livre


Este artigo conta mais uma história de peraltice da minha infância que, só hoje, venho compreender com mais nitidez. Não se apressem, caros leitores, a conjecturar maledicências somente pelo título do artigo. Leiam-no até o fim!

Eu sempre sentia uma pontinha de inveja (no bom sentido) quando alguém me dizia algo assim: "Fui tocado por Jesus" ou, "Naquele momento eu senti, fortemente, a presença de Deus" ou "Eu senti que Nossa Senhora segurou na minha mão"...? Essas pessoas sempre foram tidas por mim como privilegiadas.

Minha terra natal (Pão de Açúcar, em Alagoas) tem o privilégio ímpar de ser banhada pelo Rio São Francisco. Naquela parte final do "Velho Chico" chamada de baixo São Francisco, a água é geralmente cristalina, límpida e de um azul impossível, antes de se precipitar e se perder no mar. Dizem que a beira-rio de Pão de Açúcar é uma das mais belas de todo o "Velho Chico". Acredito nisso e sinto-me especialmente brindado por ter nascido naquele torrão.

(Veja os créditos da foto acima no final deste artigo)  


Quando criança, eu adorava tomar banho no São Francisco. Obviamente, íamos escondido e sem a permissão de nossa mãe, dona Iolanda. Havia, aqui e alhures, histórias de  cardumes de piranhas que devoravam banhistas. A despeito de isso nunca ter acontecido, esse tipo de ataque voraz de um cardume estraçalhando um ser humano costumava povoar nosso imaginário infantil e nos causava muito medo. Mas, o fascínio e a atração que o refrescante banho de rio exercia sobre nós era mais forte!


Então, agíamos como os gnus e zebras que, a despeito dos gigantescos e famintos crocodilos à sua espreita, atravessam, epicamente, o Rio Nilo em suas migrações à procura de pastos mais verdes nas savanas da margem oposta.


Como não sabíamos nadar, eu e meus irmãos (geralmente andávamos e bincávamos em trio - “Mô-zinho”, o Mosart, “Zezinho”, o mais novo dos três, e, por fim, este danado que vos fala), quando íamos tomar banho de rio, banhávamos onde conseguíamos “tomar pé”, dada essa nossa inabilidade de nadador.


Nossos banhos de rio traquinas geralmente eram efêmeros. Chegávamos, subíamos em uma das canoas ali ancoradas e, sentados, tirávamos todas as vestes e tchibum no rio, por trás das canoas, para não revelarmos nossas partes pudicas! A nossa insolência infantil não durava mais que 10 minutos, mas era o suficiente para fazer-nos felizes e refrescados após nossa exaustão causada pelas carreiras do jogo de futebol ou das brincadeiras de "pega" ou de "rouba-bandeira". Depois do resfreco do banho, púnhamos nossas vestes que, a despeito de ficarem úmidas, o calor de Pão de Açúcar se encarregava de secar até que chegássemos em casa com a cara mais cínica: "Oi, mãe! Estávamos jogando bola na c'rôa do rio".


O Rio São Francisco, à altura de Pão de Açúcar, é lindo! Uma das coisas mais belas que se via subindo ou descendo sua calha, naquela época, eram as cada vez mais raras canoas de "torda” (pronuncia-se com o sotaque igual ao do caipira paulista ou mineiro) como falavam os ribeirinhos. Na verdade, os ribeirinhos se referiam às canoas de "tolda", majestosas e colossais embarcações dotadas de duas velas gigantescas e uma espécie de “casinha”, na proa, que servia para o canoeiro dormir, cozinhar, ou estocar mercadorias ao abrigo da chuva, e que singravam o rio, ziguezagueando da margem alagoana à margem sergipana, à procura do melhor ângulo para a brisa fazê-las deslisar mais rápido sobre a lâmina d'água.


Havia, ao longo da margem alagoana do São Francisco e bem em frente à área urbana da cidade, uma sinistra canoa, de nome “Jumenta” que naufragara e ficara semienterrada. A “Jumenta” nem sempre estava à mostra, pois, de forma sazonal, o rio recuava ou avançava por longos períodos, a depender do comportamento das chuvas e da abertura das comportas da hidrelétrica de Paulo Afonso (a de Xingó ainda não existia naquela época), localizada a cerca de 70km rio acima. Assim, em determinados períodos do ano, o São Francisco nos permitia entrever o fóssil da inerte, sinistra e fascinante “Jumenta”.

Vamos tomar banho na Jumenta!” era comum a gente ouvir os rapazes afoitos gritarem convidando seus amigos de peraltices e aventuras. Mas - e aí vem o motivo do adjetivo “sinistra” -, tomar banho na "Jumenta" poderia ser muito perigoso para quem não sabia nadar, como eu e meus irmãos, pois, de um lado da canoa naufragada era raso, devido ao acúmulo de areia resultante do assoreamento. Porém, do outro lado, formava-se um bolsão profundo criado pelo movimento do rio que levava a areia – um abismo subaquático que imaginávamos terminar na China, do outro lado do mundo! A despeito disso, a "Jumenta" jazia ali, não sei há quantos anos, imóvel, resignada com seu destino trágico de Titanic do baixo São Francisco, como que se contentando por, pelo menos, eventualmente servir como um modesto "Wet'n' Wild" para os moleques da minha terra natal (rsrsrsrs)!


Não me lembro exatamente quem, mas, naquele dia, estavam conosco mais uns 2 ou três moleques, igualmente jovens e desobedientes curtindo a “Jumenta” e os perigos que ela guardava.


Deveríamos tomar banho no lado raso da “Jumenta”, mas, na verdade, estava eu (sempre eu!)  a tomar banho no lado abissal e perigoso da náufraga embarcação (tomar banho no lado raso não tinha a menor graça!), mas segurando em sua estrutura de madeira para não submergir. Num momento de descuido ou de ousadia meus, não me recordo bem, vi-me solto da estrutura da canoa que me garantia ficar à tona. 


Logo, o redemoinho que a correnteza do rio produz nos obstáculos que encontra pela frente, como a "Jumenta", levou-me para fora de seu alcance! Num esforço hercúleo, tateei minha mão tentando segurar na "Jumenta". As pontas de meus dedos chegaram a tocá-la, mas não o suficiente para eu empunhar firmemente a madeira cheia de limo, e eu perdi o frágil contato com minha "tábua de salvação"! 


Tomado de pavor, tentei alcançá-la de novo, em vão. Aí, uma forte descarga de adrenalina percorreu meu corpo da cabeça aos pés, fazendo-me arregalar meus olhos já naturalmente grandes! Comecei, então, a me afogar! Debatia-me, quase que inutilmente, na tentativa de manter minha cabeça à tona, desprovido de habilidades para nadar ou boiar.


Meus gritos por socorro pareceram-me, naquele instante, inaudíveis pelos meus companheiros de aventura, pois ninguém acorrera a me salvar. Rapidamente calculei que restava-me uma única alternativa: tentar tocar o leito do rio para, num impulso, voltar à tona e tentar renovar o ar de meus pulmões, cujo oxigênio já se encontrava em níveis críticos, para agarrar-me novamente à estrutura da “Jumenta”. Pus em prática, então, aquele meu "plano B".


Submerso, estiquei, rapidamente, minha esguia perna na direção do fundo do rio desejando, mais que tudo, tocar em seu leito! Já quase sem fôlego, quando senti ser impossível tocar o leito, outra descarga de adrenalina, dessa vez mais forte, percorreu meu ser e o caos se estabeleceu em mim, e submergi mais ainda!Nunca vou saber se meu pé chegou a apenas alguns centímetros do fundo. 


Sem chão e já contorcendo-me em movimentos desordenados, ainda dava para chegar próximo à folha d’água muito rapidamente. Quedo-me a imaginar minha expressão facial de terror. Debatendo-me, eu estendia minha mão para fora d’agua, mas a sensação que eu tinha era de que os outros moleques que curtiam o banho não se aperceberam de minha iminente morte!


Num último instante de esperança, quando meus pensamentos já estavam ficando desconexos, e com a frequência cardíaca acima dos 130 bpm, minha mão foi segura firmemente e eu fui puxado para a segurança. Minha vida iria durar, pelo menos, uns 45 anos dali em diante!


Sinceramente não sei - nem me lembro - quem me puxou. Meu próprio desespero me impediu de saber quem fora meu salvador naquele instante. Sempre achei que fora um dos moleques que estavam curtindo o perigoso banho na “Jumenta”. 


Meu fascínio pela "Jumenta" acabou para sempre naquele dia. Nunca mais nos reencontramos... eu e "Jumenta". Naqueles momentos de desespero eu nem tinha tido tempo de pensar se aquilo ocorrera porque Deus me abandonara, me deixara à própria sorte justamente naquele dia de minha desobediência: o dia de meu primeiro banho-aventura na "Jumenta"!



Há dois anos passei a voltar-me um pouco mais para a minha espiritualidade e religiosidade. Isso quase nada mudou em mim, exceto a minha visão da vida e das coisas. Em outras palavras: mudou quase tudo! Uns amigos gaiatos dizem que essa minha nova fase é porque meu saldo de pecados estava grande demais e minha idade já avançada (51). Pode ser, mas estou "treinando com afinco" para virar esse placar.


Depois de aceitar o convite e fazer o ECC (Encontro de Casais com Cristo) e, por conta disso, passar a deixar-me evangelizar (nunca tinha lido a Bíblia com habitualidade, reflexão ou atenção devidas) e a prestar atenção em certas coisas, ainda assim, me achava sem prestígio com o Homem lá de cima, pois Ele nunca quisera "aparecer" para mim, ou dar-me a sensação forte de que estava ali do meu lado.


Voltar-me para a espiritualidade, frequentar os encontros de meu grupo do ECC e começar (é, eu estou apenas começando nessa caminhada, mas nunca é tarde e ainda dá tempo de chegar lá!) a me conhecer melhor e a conhecer a palavra Dele, são novidades que estão me fazendo interpretar os fatos de minha vida, a minha própria existência e o mundo sob uma ótica diferente, e permitiram-me entender que aquela mão salvadora que se estendeu em minha direção foi, em última análise, a mão Dele, ou foi, pelo menos, providenciada ou autorizada por Ele. Não tenho motivos, pois, para me sentir sem privilégios com Ele. Ninguém os tem.


Se, andando pela margem do rio naquele dia após o banho na "Jumenta", eu pudesse ver as "pegadas na areia", tal como descrito no famoso texto homônimo (veja o link ao final), certamente só enxergaria um par delas.


Aquele momento de perigo, à semelhança de tantos outros pelos quais, até desapercebidamente, passei ao longo de minha vida, fez-me ver, hoje, reprocessado-o em minha atual compreensão, ter sido Ele quem me estendeu a mão e me livrou do pior. Naquele momento do rio, nos últimos instantes de minha agonia, eu quase(!), quase(!) vi Seu rosto! E esse pequeno detalhe do “quase” é que me possibilitou estar aqui, agora, contando esta história verdadeira.


Hoje, com a vida que tenho, com a família que me foi dada, com os amigos, com meu trabalho, com a alegria de viver, com a saúde que penso ter e com uma nova consciência e leitura de minha vida, entendo que não posso me sentir um desprestigiado por Ele.


Só por isso os perigos da vida se acabaram para mim? Jamais! Eles se repetem e se renovam a cada esquina que cruzo de carro, a cada passo mais rápido ou mais lento que dou, a cada decisão que tomo, a cada escolha que faço, a cada ação ou omissão que praticamos eu e aqueles por quem sinto amor ágape. Hoje, posso entender e aceitar, um pouco melhor, que Aquela força é indispensável, sim. Mas Ela está sempre disponível para todos nós. Amém?

Amém!   

VOLNEY AMARAL

Referências:


Nota:
1) resolvi substituir por este artigo aquele que havia anunciado no artigo anterior, cujo título provisório é "Bichas e Deputados".


CRÉDITOS:
Foto de Pão de Açúcar - Reprodução gentilmente autorizada pela fotógrafa Rita Barreto
Copyright © 2010 Rita Barreto. All rights reserved.
REPRODUÇÃO PROIBIDA - ® Todos os direitos reservados.
www.ritabarreto.com
Figura de Jesus salvando : gravura de domínio público 


Comentários

  1. Depois de um dia cansativo de trabalho, chego em casa e como de costume vou diretamente para o computador para conversar com meus amigos ausentes do face e logo me deparo com um link postado por meu amigo Volney em seu blog e como não poderia ser diferente entrei no blog para ler e foi simplesmente SURPREENDENTE!!!! Fiquei a viajar nas aventuras e traquinagens dos moleques e logo me lembrei da minha infância, da beleza do rio são Francisco onde tive a oportunidade de conhecer a cidade de Pão de Açúcar (uma vista linda de cima do cristo). A princípio fiquei a imaginar quem era a jumenta? Rsrsrsr ainda bem que era apenas uma velha canoa naufragada!
    O final do artigo me deixou simplesmente emocionada com a existência de um único Deus verdadeiro capaz de curar e salvar. Querido Volney eu não tenho palavras para descrever a imagem do escritor, poeta, homem e cristão que você representa.
    Parabéns pela criatividade em escrever artigos onde podemos ler e refletir, uma verdadeira lição de vida!

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    1. Antônia, que comentário mais legal! Me emocionei! Muito obrigado. Espero que os demais leitores tenham gostado e comentem sua experiências semelhantes.Um abraço.

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  2. Sempre achei que você tinha o dom de escrever. Mas agora tenho certeza que esse dom existe. Meu irmão Vólney, parabéns pelo texto fantástico e emocionante que você nos proporcionou. Jamais desista de expressar a sua vontade enorme de escrever o que vem de dentro do seu coração. E tenha certeza que Deus desde o seu nascimento está ao seu lado. Foi Ele, com certeza que estendeu a mão para você, por que Ele sabia que você se transformaria em um homem com muitas qualidades e de carater.
    Marinho.

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  3. Muito bom. Bela descrição da vida ribeirinha, principalmente para quem passou a infância no asfalto, como eu. E o parágrafo onde você descreve o quase afogamento é um verdadeiro thriller. Cheguei a sentir falta de ar.

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    1. Caro Luiz Carlos. Viajei anteontem para Delmiro Gouveia e, na volta, pernoitei em Pão de Açúcar, lá chegando ainda perto do meio-dia. Procurei saber da "Jumenta", onde ficava exatamente o local e que fim teria levado. Enfim, encontrei-me com meu amigo de infância Geraldo Géu), hoje um militar da reserva, que tem um barzinho na orla de lá. Ele me apontou o local exato e me disse que com o assoreamento do rio, há décadas a "Jumenta" não vem à tona, mas se encontra lá, há uns 2 a 3 metros sob a areia da c'rôa (coroa) do rio (o aluvião formado pelo assoreamento). Visitei, também, a rua em que morei (cenário do artigo "Minha Nudez Castigada") mas não estava com minha máquina fotográfica à mão. Fiquei impressionado com a minha noção de espaço e distância, todas muito próximo do que eu disse no artigo. Por fim, lá a temperatura anteontem próximo ao meio-dia estava acima dos 40 graus. Não me furtei de tomar um refrescante banho de rio às 5 da tarde, com a água bem fria. Uma delícia! Obrigado por acompanhar e comentar o artigo de meu blog.

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  4. Marinho, amigo firme e forte há quase 40 anos. Receber elogios de você me soa suspeito, pelo estreito de nossa amizade, como você disse, fraternal. Sei que você (seus filhos e Nida)curte essas minhas histórias de peraltices. O blog é uma feramente muito legal porque ela salva e conserva as histórias, eternizando-as e imortalizando nossas memórias, como as múmias egípcias. Obrigado pelo carinho. Um beijo fraternal, seu mala!

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  5. Já tive a chance de conhecer de perto o Velho Chico, lá em Pão de Açúcar. É verdadeiramente lindo! Lendo seu texto, fui transportada até lá e, sentindo as emoções embutidas em suas palavras, ratifico o que você defende em seus últimos parágrafos: Deus sempre está ao nosso lado, guiando-nos e, ainda que estejamos passando por sofrimentos, Ele nos acompanha, livrando-nos de dores maiores. Fique certo de que essa "mãozinha" que Ele lhe estendeu se faz presente em todos os nossos dias. Beijos. Sua esposa Lu.

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    1. Gente, esta é a LU de quem tanto falo. Em suas poucas palavras ela expressa a doçura de alma que é. Bjos, minha amada!

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  6. Volney,

    Moral da história (considerando que "estória" foi abolido da nossa língua): nenhuma jumenta vale a pena quando sua vida está em jogo!! kkkkk :)

    Reforço os comentários acima e digo que você poderá compilar essas histórias em livro posteriormente!

    abração

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    1. RSRSRS! Breno, você está certo. Algus destes textos formarão um futuro livro... Aguarde! Obrigado pelos comentários e pelo prestígio que você dá a meu blog.

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  7. Círio Mendes comentou: Meu caro amigo Volney, também tive o privilégio de conhecer a belíssima cidade de Pão de Açúcar dentre tantas outras belas ribeirinhas do Velho Chico. É incrível como o rio guarda tantas riquezas que precisam vir à tona. Em sua narrativa, transportei-me ao leito do também enigmático Rio Paraíba onde tive uma experiência parecida com a sua nas imediações do Sítio Araújo, onde nasci, na cidade de Quebrangulo e lhe digo uma coisa, a mão de Deus verdadeiramente é quem nos salva nessas horas, pois como voce disse, mesmo que alguém tenha sido o instumento, foi com a permissão d'Ele que este agiu. Um forte abraço meu amigo e obrigado ao Senhor por poder participar desses momentos com voce e Lu.

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  8. Volney,

    Ótimo texto. Primoroso testemunho!!! Veja Deus executando em ti uma maravilhosa obra!!! Use seus talentos (que são muitos) como o servo fiel, multiplicando-os por dez. Parabéns. Hamilton - ECC Jatiúca.

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    1. Agradeço, Hamilton, sua gentileza. O ECC que você coordenou foi meu divisor de águas. VOcê e seu trabalho no ECC da Divino são algo em que deevemos nos espelhar. Um abraço.

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