HILÁRIA AVENTURA NA FRANÇA

Falar pelo menos uma língua estrangeira é algo imprescindível, há muito tempo. Como aluno e professor de inglês que fui por muitos anos, tenho um bom domínio da língua como uma grande conquista pessoal. Aprender inglês não foi lá tão difícil. Não me dou por satisfeito, entrementes. Eu queria mesmo era saber falar francês. Que língua bela! Que intonação! Que musicalidade! Que versatilidade de biquinhos e boquinhas que o idioma francês demanda! É, sem dúvida, um idioma muito charmoso e com um quê de romântico! 
Apesar de eu me achar alguém com facilidade para aprender outras línguas, a verdade é que, com o declínio da influência francesa em nossa cultura e com a ascensão da influência da cultura americana, mais notadamente dos anos 60 para os anos 80, fiquei para trás no francês, pois o idioma francês perdeu espaço também no mercado de escolas de línguas.
Até os anos 70, as escolas públicas ainda ensinavam o francês obrigatoriamente, adotando o famoso livro de "G. Mauger" (lia-se Gêmôgê). Minha mãe, quando criança, estudou francês e sabe, ainda hoje, cantar alguns versos da Marselhesa, o hino da França, do qual eu mal sei a primeira frase "Allons enfants de la Patrie..! Cheguei a estudar, de forma incipiente, no Colégio Cônego Machado, onde estudei, o idioma francês cujo professor era chamado Emílio.
Mas, não saber o idioma de G. Mauger nunca foi uma barreira para que alguém viaje à França! Em 1996, então mochileiros, viajávamos eu e Lu pelo Velho Continente. Nesse dia estávamos em Nice, na Riviera Francesa, na costa sul da França. Havíamos acabado de  visitar Montecarlo, quando Lu teve a ideia de visitarmos Yvens Fernandes, seu amigo de faculdade que estava fazendo alguma espécie de pós-graduação em Estrasburgo, uma cidade localizada no nordeste do país francês. 
"Vamos tentar ligar para ele?", sugeriu Lu. De Nice, ligamos para a casa de Yvens, em  Arapiraca, onde obtivemos seu número de telefone e endereço em Estrasburgo, França. Informaram-nos, também, que ele estava estudando e morando no hospital CHRU Strasbourg - Hôpital de Hautepierre, como médicin attaché, algo próximo a um "médico adjunto" ou "assistente" ou "residente". 
Com essas precárias informações, compramos um cartão telefônico (coisa que nem existia no Brasil naquela época) e Lu, confiando em minhas habilidades, me deu a incumbência de tentar localizar e falar com Yvens - isso por telefone e em Francês, obviamente
Abro, aqui, parêntesis para relatar o que acontece com quase todo mundo que viaja para um país cuja língua não domina: decora um punhado de frases básicas e algumas expressões idiomáticas que julga ser de alguma utilidade. Comigo foi mesmo assim. Decorei umas palavras e expressões muito comuns em viagem tipo "sivuplé" (s'il vous plait), "merci", "cambian?" (combien?)", e assim por diante. 
O que todos nós nos esquecemos de fazer é lembrar que a comunicação é uma via de mão dupla. Você pode decorar uma frase, dizê-la com um sotaque perfeito, fazendo-se entender pelo seu interlocutor, mas se você não souber ou não estudar o que as pessoas podem te responder no idioma estrangeiro, vai acontecer algo parecido com o que aconteceu comigo.
Diante de nossa necessidade, eu resolvi soltar o "G. Mouger" que havia em mim. Então, juntando algumas regras que eu pensava saber, resolvi telefonar para o número do alojamento do Yvens em Estrasburgo. "Vamos lá", pensei, "Geralmente as palavras em francês têm a última sílaba tônica. Então Yvens Fernandes soaria, na minha teoria, como "Ivêns Fernandêz" e daí por diante, concluí...
Disquei o número do Yvens lá França. Depois de alguns tons de chamada alguém atende no outro lado da linha. Eu, logo me adiantei:
"Bon. Jê-vudrê-par-avéc-mess-Ivêns-Fernandêz - anmediçan-atachê - Hospital ôtepiérre"... (essa era a pronúncia que eu imaginava ser correta em Francês). Eu achava eu que estava dizendo "Eu gostaria de falar com o Sr. Ives Fernandes, médico residente do Hospital Hâutepierre", mais que isso, eu achava que estava falando com o sotaque francês correto!
Sem ter me preparado para qualquer resposta, ouvi meu interlocutor falar, de forma curta e seca: "ilnepá!".
"Pôxa, Lu, o cara não deve ter entendido direito meu sotaque", pensei. Aí eu caprichei um pouco mais no sotaque francês, agora mais pausadamente: "Jê, vudrê, parlê, avéc,  messiê,  Ivên- Fernandêz,  anmediçan, atachê - Hospital ôtepiérre".
O cara no outro lado da linha era telegráfico: "ilnepá". 
"Que diacho é 'ilnepá', Lu?". Só pode ser "Não entendi!" ou algo como "Repita". Pela entonação do meu interlocutor eu só achei que fosse isso.
Repeti minha frase "francesa" umas 4 vezes. E ele não saía do tal do "ilnepá!", agora já dita com um toque de impaciência. Gastei todos meus créditos do cartão e não conseguimos falar com o Ives. "Não tem jeito. Vamos ter que tentar encontrá-lo pessoalmente lá em Estrasburgo!", sentenciamos, já que o deslocamento até Estrasburgo não teria custo adicional, pois viajávamos com um Eurailpass Flex que nos permitia viajar quase que ilimitadamente na Europa, dentro do período de sua validade. 
Reservamos lugares em uma cabine-dormitório (couchette) e fizemos uma gostosa viagem noturna para o outro lado da França, chegando em Estrasburgo pela manhã.
Encontrar o endereço de Ives e, finalmente, chegar até a porta de seu alojamento foi fácil. Tocamos a campainha e, depois de alguns segundos, seu companheiro de quarto, um cara com jeito de ser do oriente médio, abriu a porta. Eu já tinha decorado a frase e tomado folego: "Bonjú, messiê. Jê-vudrê-par-avéc-mess-Ivís-Fernandêz."
E o cara respondeu usando aquele mesmo - para mim já famigerado - "ilnepá!" E, com gestos, me explicou que ele não estava! É isso "Il n'est pas" "Ele não está!". Agora faz sentido! O tempo todo ele estava entendendo o meu francês. Eu é que não entedia o francês dele (e de ninguém mais)! "Ah, Lu, ilnepá! Claro, ilnepá! Oui, oui, oui, messiê, merci-bocú" eheeheh. Disse isso e me retirando, com a cara no chão! Quando contornamos a primeira esquina, caímos na gargalhada, eu e Lu, sorrindo de nossa própria miséria! KKKKKK Ilnepá! KKKKKKK
Resultado: ligamos de novo para Arapiraca e descobrimos o telefone da namorada brasileira dele que morava em Manheim (Alemanha). Finalmente conseguimos falar com o Yvens, após o que rumamos para Manheim de trem (não fica muito longe), onde finalmente  nos encontramos e pudemos curtir uma noitada regada a cerveja alemã e muita conversa boa até altas horas da madruga.O assunto principal de nossa conversa? Nossa hilária epopeia para chegar até ali. 


Hoje, Yvens Fernandes é um conceituadíssimo neurocirurgião que mora e trabalha em Campinas-SP e é uma referência nacional pela técnica que concebeu e que tem salvo e melhorado a vida de muitos pacientes vítimas de acidentes com sequelas neurológicas.

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