A PEREBA NÃO PODE ESPERAR

Consultas marcadas somente para o ano que vem, longas filas de espera e superlotação  nas recepções de consultórios, hospitais e laboratórios... até parece que estamos falando do SUS! Mas estamos falando do "SUS pago": os planos de saúde!

Os médicos brasileiros que estão vinculados a planos de saúde se organizam para promover talvez a mais abrangente paralisação de todos os tempos entre 10 e 25 de outubro vindouros. Preparem-se! Portanto, programem suas doenças para antes ou para depois desse período!

Tenho acompanhado a angústia de minha esposa-médica para chegar rigorosamente na hora da primeira consulta, e atender a todos seus pacientes com a pontualidade, a atenção,  o zelo e o carinho que todos merecem, dispensando-lhes o maior tempo possível na consulta, no exame físico e no retorno. Seu dia de trabalho resulta, invariavelmente, em trabalhar uma ou duas horas por dia além da conta!

Parece incrível, mas desde os tempos em que ela era cooperada da UNIMED, ela reivindicava a contratação de mais dermatologistas, sua especialidade. Você poderia imaginar que ela estaria, sem perceber, pretendendo a contratação de médicos concorrentes. Isso é o que menos importa: a concorrência. A UNIMED sempre fez vista grossa para seus apelos e, inaudita, achou melhor se desvincular daquela cooperativa.

De uns tempos para cá, os planos de saúde descobriram e passaram a utilizar mecanismos ardilosos para aumentar seus lucros e diminuir suas despesas. E isso tem deixado os pacientes à beira de ataques de nervos, de insanidade, diante da impotência que se abate sobre a relação planos de saúde-clientes-médicos.

Uma das artimanhas dos planos de saúde é a restrição, ao máximo, à oferta de médicos em quantidade adequada e proporcional às vidas que pretende cobrir nas diversas especialidades. Como isso beneficia os planos? Ora, digamos que um determinado plano de saúde possua 10 médicos de tal especialidade para 100.000 vidas (clientes).

Cada médico tem uma capacidade limitada de atendimento clientes/mês representada pela quantidade de horários de consultas/dia. A pequena oferta de médicos resulta em que os médicos já se encontram com suas agendas lotadíssimas a ponto de só conseguirem marcar novas consultas para daqui há 60 dias! Em alguns casos, a espera é superior a 90 dias. 

Não tem pereba que não sare até lá. Não tem ziquezira que não tenha seu prazo de validade estourado. Não tem fratura ou luxação que não se consolide deixando os pacientes com sequelas irreversíveis, às vezes. Até lá, curandeira já deu pitaco, a vizinha emprestou um creme que parece servir, um médico não especialista já passou um corticóide que mascara o aspecto da lesão, combate o sintoma, mas não combate a causa. 

A consequência disso é que os planos conseguem limitar suas despesas com consultas médicas porque a oferta de vagas para consultas de um médico para determinado mês está saturada pela saturação das agendas dos poucos médicos que disponibilizam; a agenda do próximo mês também, e assim por diante. Contratar (credenciar) mais 10 médicos para aquela especialidade representaria dobrar as despesas com pagamento de consultas. E os planos não querem fazer isso!

O aviltamento do valor das consultas, por exemplo, acarreta na necessidade de o médico ter que atender a um número cada vez maior de pacientes por mês, para poder sobreviver de sua profissão com dignidade. Daí vem a diminuição do tempo de cada consulta e a óbvia queda da qualidade do atendimento do médico. Ser médico, em termos proporcionais com o tempo que se gasta para servir ao cliente, vale menos que ser uma manicure, sem qualquer demérito para estas profissionais das unhas, dos pés e das mãos.

As consultas, que antigamente eram de cerca de 40 minutos, hoje em dia, estão, em média, durando 20 minutos, mas há médicos recordistas mundiais que alcançam a fantástica marca de uma consulta em 5 minutos. Ter um médico que ao menos olhe para o rosto do paciente já faz qualquer paciente se sentir um privilegiado!

Se for paciente de primeira vez, então não se fala. Os médicos já não dão conta de rever seus estoques de pacientes antigos (as consultas de revisão são imprescindíveis para a avaliação da evolução ou não da queixa anterior). Admitir um paciente novo implica não somente em ter mais um paciente, mas a gastar aquele tempo mais longo e indispensável para a primeira consulta, onde se é feita toda a anamnese e um levantamento de todas os aspectos etiológicos e semiológicos dos pacientes. 

Outra forma que as operadoras de planos de saúde têm para contenção de despesas é a famigerada autorização (na verdade, é a desautorização) para a realização de exames. Essa prática interfere perigosamente no serviço médico, pois somente o profissional, e não um tecnocrata, um burocrata de gravata que senta em um birô em lugar remoto e determina quem deve ter mais raiva naquele dia!

Então, os planos de saúde limitam os exames, por exemplo, de ultrassom a um exame a cada ano ou a cada dois anos, independentemente de se o ultrassom anterior foi do fígado e este é da tireóide! O "sistema" simplesmente "não autoriza" o exame e o paciente, lado fraco da relação vê-se obrigado a custear o exame com recursos próprios ou ir às portas da justiça para obter uma ordem em antecipação de tutela. 

E aí vem o efeito cascata. Juízes das pequenas causas já se sentem aborrecidos com os consumidores, pelo número cada vez maior de ações, que têm que julgar, de tutelas antecipadas e liminares que têm de apreciar. Nesse jogo de empurra, sobra o atrito para os atores que compõem esse drama e que têm a obrigação de se relacionar pessoalmente: o médico e o paciente, o paciente e as atendentes. É cada vez mais tenso o ambiente dos consultórios médicos com pacientes irritados, impacientes e revoltados com a situação.

Remunerar dignamente os médicos, hospitais e laboratórios, garantindo-lhes um reajuste automático e periódico (como os planos têm em relação às mensalidades de seus clientes), proteger os médicos contra o descredenciamento despótico e desarrazoado dos planos de saúde e, por fim, afastar a indesejável e antiética intervenção dos planos de saúde nas relação médico-paciente não me parece pedir muito: é pedir o mínimo. 

Teremos que ser muito mais "pacientes" do que costumeiramente já somos!

VOLNEY AMARAL

(1) - Pereba  (pop.) - ferida, úlcera;
(2) - Ziquezira (pop.) - coceira, prurido, comichão.

Comentários