RETRATO-FALADO DE UM REI

Sempre que ouço esta canção, é inevitável sentir um nó na garganta e ficar com os olhos marejados:

"Setembro passou, outubro e novembro, já tamo em dezembro, meu Deus o que é de nós? Assim fala o pobre, do seco nordeste, com medo da peste e da fome feroz,Ai, ai, ai, aaaai !!!!..." (1)

Ela é uma espécie de retrato-falado de um dos mais marcantes e inolvidáveis momentos de minha vida: o dia 25 de julho de 1970, dia em que partimos, de vez, de nossa terra natal, a cidade de Pão de Açúcar;


Longe de ser 100% fiel à nossa saga pessoal, essa canção é uma espécie de réquiem àquela parte dramática e de incertezas vivida por minha família naqueles confins das Alagoas, que narrarei em outro artigo.

Cerca de 3 ou 4 anos antes da nossa triste partida, ocorrida em 1970, anoitecera em Pão de Açúcar havia pouco mais de meia hora. Eu caminhava na companhia de meu pai, que me segurava pela mão. 

Caminhando, ele se dirigiu a alguma hospedaria que ficava na Av. Bráulio Cavalcante. Lá ele se avistou com um homem, com quem conversou por uns 10 minutos. Era um mulato de rosto arredondado, de uns 50 anos de idade, estimativa que somente hoje consigo fazer, ao lembrar daquelas imagens guardadas em minha memória.

O tal do homem, que chegara à cidade a bordo de uma caminhonete Ford, vestia uma calça de linho, camisa talvez de tergal de mangas curtas, e usava óculos. Olhei-o de baixo para cima, devido à minha estatura infantil, enquanto ele e meu pai trocavam alguns acertos e combinavam umas coisas ininteligíveis para mim.

Naquela época, meu pai possuía um cinema, estabelecimento que, por ter palco e assentos para uma plateia, também servia de local para shows e apresentações de cantores, inclusive alguns já famosos, a exemplos de Nelson Ned, Antônio Marcos, Waldick Soriano, ícones populares daqueles tempos. Era uma das formas de meu pai auferir algum dinheiro extra em seu empreendimento. 

Meu pai aproveitava a ocasião em que artistas iam dar shows em Santana do Ipanema, cidade mais desenvolvida que Pão de Açúcar, e os contratava para esticar um pouco mais a turnê até nossa cidade, a cerca de 35 quilômetros de lá, às margens do Rio São Francisco. 


Mas aquela figura com quem ele conversava naquela noitinha fora contratado em uma famosa viagem que meu pai fizera meses antes a Recife, no vizinho estado de Pernambuco, então a mais influente metrópole da região.

E eu percebi que ele devia ser alguém especial, pois a conversa atraiu a atenção de alguns curiosos. Terminada a conversa, seguimos a caminhada. Tínhamos nos afastado ainda pouco daquele local, quando meu pai me indagou, orgulhoso e quase em forma de cochicho:

- Sabe quem é aquele homem, Zenone(2)?

Eu apenas olhei para meu pai e, sem que eu tivesse tempo de esboçar qualquer resposta, ele mesmo cuidou de responder:

- É Luiz Gonzaga!

Ao saber disso, enquanto nos afastávamos caminhando, eu andava e olhava para trás, como que arrependido de não ter ficado ali mais um tempinho. 

Infelizmente, antes dessa revelação, eu ainda não tinha qualquer ideia de quem conversava com meu pai, nem da sua importância para a história da música brasileira e, em especial, para a cultura e vida nordestina. Mas suas canções da época eu já sabia cantarolar, e esse cara estava ali, a uns dois metros de distância de mim! 

Naquela noitinha, há mais ou menos 45 anos de hoje, o fato de ele não estar usando seu "cetro" branco de teclas, nem sua "coroa" e vestes de couro foi determinante para me impedir de identificá-lo e de curtir aquele momento que jamais tornaria a acontecer. 


Horas mais tarde, ele faria uma apresentação em Pão de Açúcar! Seria mais um sucesso de público e crítica. A bilheteria daria para custear o cachê, os demais custos e ainda sobraria um pequeno lucro. 

Na semana passada assisti com minha esposa ao filme "Luiz Gonzaga - De Pai Para Filho", sobre a vida do rei do baião. 

No cinema, durante a exibição do filme e em meio às lágrimas incontidas de saudade e emoção, houve momentos em que, em devaneios, eu torci para que, no filme, houvesse alguma cena que mostrasse suas andanças pelos sertões das Alagoas, especialmente em minha terra natal, Pão de Açúcar. 


No ápice de minhas alucinações, eu cheguei a me imaginar na cena, ainda criança, segurando a mão de meu pai, enquanto eles travavam aquela breve prosa aqui narrada, dentre as tantas outras cenas que tanto nos emocionaram.

Se meu encontro pessoal com aquele rei foi um momento tão efêmero na grandeza aferida pelo tic-tac do relógio, na minha alma e memória aquela cena ficou parada no tempo tal como uma fotografia que dura até hoje sem jamais ter esvanecido: um privilégio que cultivo com saudade e orgulho, e que passarei de pai para filho através deste texto!

"- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
- Para sempre seja louvado! " (3)


VOLNEY AMARAL


Texto dedicado a meus 3 filhos.

Se vivo fosse, Luiz Gonzaga teria completando 100 anos em 13/12/2012!



(1) A triste partida. (música de Luiz Gonzaga e letra de Patativa do Assaré) - 
(2) Apelido que meu pai me dera desde bebê.
(3) Diálogo mostrado no filme "Luiz Gonzaga - De Pai Para Filho - eventualmente usada no sertão quando alguém chega na porta da casa de outrem, se anuncia e é respondido.

Comentários

  1. Para nós, Gonzaga é considerado um tipo sanguíneo. Com ele, aprendemos toda a história do sertão e conseguimos visualizar através de sua música a tradição e os costumes daquele povo.Amei seu texto e suas lembranças. àurea Maria

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  2. Fico imaginando de quantas formas esse tio ainda irá me surpreender? História sensacional.

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  3. Voney, parábens, não só pelo texto, mas por esse ser humano que você é. Agradeço a DEUS de participar um pouco desses bons momentos que temos passado em família. Um grande abraço em você na Lú e nos meninos. Jura e Mari.

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